Mário Pedrosa, um legado em constante movimento

Mário Pedrosa em Madri, 1974

Quito Pedrosa*

Quando pensamos em legado, muitas vezes estamos nos referindo à obra formal deixada por um autor e em como esta influenciará o seu campo de ação e as futuras gerações. Em alguns casos específicos, o legado é simplesmente o efeito na posteridade das ações praticadas ao longo de uma vida.

No caso de meu avô, Mário Pedrosa, esses dois sentidos estão interligados. Se por um tempo foi considerado que sua influência nos grupos e nas pessoas de sua convivência foi mais profunda e transformadora do que sua obra escrita, isto se deve em parte ao fato de que seu primeiro livro publicado foi aos 49 anos e que uma percepção mais geral dessa obra só foi possível após sua morte. Ainda que em sua última década de vida tenha sido publicada parte importante de seus escritos sobre crítica de arte, com o trabalho de organização feito por Aracy Amaral, a dimensão de sua produção crítica se fez mais ampla com as antologias editadas por Otilia Arantes e com a organização de parte de seu acervo documental feita pelo Dainis Karepovs, do Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa (Cemap) e, num segundo momento, pela catalogação e doação de outra parte do acervo documental para a Biblioteca Nacional.

Posteriormente, duas publicações estrangeiras superariam as fronteiras idiomáticas e levariam sua obra para ambientes acadêmicos mundo afora. Me refiro aos livros Mário Pedrosa, Primary Documents (MoMA), organizado por Gloria Ferreira e Paulo Herkenhoff, e Mário Pedrosa: De la naturaleza afectiva de la forma, editado pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, organizado por Gabriel Perez-Barreiro e Michelle Sommer.

Além dessas iniciativas que envolveram um esforço considerável para a sua realização, o número de teses de mestrado e doutorado sobre Mário Pedrosa tem crescido a cada ano, o que somado à fortuna crítica dos livros mencionados e outros, como Mário Pedrosa e o Brasil, organizado por José Castilho Marques Neto, vão ampliando o conjunto de reflexões que permitem avaliar esse legado.

Em alguns momentos de sua vida Mário Pedrosa se referiu a si como alguém que perdera todas as batalhas que lutara. Podemos supor que em parte esse sentimento se deve a uma abertura para a utopia. Suas lutas seriam inglórias enquanto não transformassem o mundo num lugar mais justo e os homens em seres mais sensíveis e críticos e isso só se daria através da revolução e do socialismo. Passageiro, esse sentimento de derrota não impediu que anos depois participasse com entusiasmo revolucionário de iniciativas que significativamente contribuiriam para a diminuição das diferenças brutais de nossa sociedade. Aí se faz sentir o legado de Mário Pedrosa e permite induzir que há ainda muito a se depreender de sua experiência como militante e como crítico de arte. O caráter utópico e às vezes visionário de suas ideias se projetam para um futuro ainda possível, mesmo em se considerando os retrocessos e golpes a que o mundo, além de nosso país, está sujeito, por força de movimentos reacionários ou fascistoides.

O que fez de Mário Pedrosa um pensador singular, usando um termo empregado por Antonio Candido, que na verdade o chama de um socialista singular, é essa mistura rara de convicção revolucionária e liberdade intelectual. Ainda nas palavras de Antonio Candido “essa exuberância, a liberdade intelectual, o desprezo pelas ideias feitas e a disposição para criar o escândalo sempre que fosse necessário”.

Tenho às vezes a impressão de que os imprevistos, as pausas involuntárias e alguns encontros inusitados propiciaram a meu avô essa abertura para a utopia, tanto quanto a leitura de “seu mestre” Karl Marx ou a atuação marcada por constantes debates junto a seus companheiros de militância.

Compreender a arte como ambiente de experimentação da criatividade humana, como um laboratório onde a liberdade fortalece e expande os horizontes, não só do simbólico e do lúdico, mas também do que se aplicará ao conhecimento, em termos de tecnologia e práticas é outro elemento que permite estender a atividade humana além das condições e dos limites do tempo presente. Esse é também um princípio que norteia o manifesto Breton-Trotsky, para o qual Mário Pedrosa teria colaborado na revisão, segundo diz Pierre Naville na carta de apresentação a Trotsky, quando Mário em 1938 vai a Paris para o congresso de fundação da IV Internacional. No entanto, não sabemos ao certo a extensão dessa contribuição.

A reflexão profunda sobre a arte torna portanto o militante um ser mais complexo e diversifica as possibilidades de atuação na construção de um mundo melhor. Ao agir nas duas tangentes, arte e política, uma série quase infinita de disciplinas se infiltram no horizonte de interesses. Assim a filosofia, a arquitetura, a psicologia, a antropologia e até a cibernética passam a ser fontes de novas perspectivas. Essa diversificação renascentista de interesses é marca de uma geração e muito provavelmente da libertação diante de um ambiente obscurantista, ainda marcado pela proximidade de um tempo de escravização e abusos feudais.

Faço essa digressão porque nos últimos anos tenho me dedicado a organizar a cronologia de meu avô para algumas publicações e à medida que vai se consolidando o relato cronológico, surgem novas dúvidas ou hipóteses que exigiriam uma investigação mais aprofundada e qualificada. Assim, poderia seguir a mesma linha cronológica do nascimento à morte, mas em vez de situar os fatos e narrar o que já foi tantas vezes dito, apontar algumas percepções e algumas dúvidas. Digo isso pensando nos diversos acidentes de percurso que marcam a trajetória de Mário Pedrosa. Não sendo este o espaço para uma missão tão extensa, levanto a seguir algumas considerações sobre os primeiros momentos de sua biografia.

Seu nascimento se dá durante um breve período de ostracismo de seu pai, Pedro da Cunha Pedrosa, recolhido a um engenho da família de sua esposa, Antonia, devido à derrota política sofrida por seu grupo. Esse fato excepcional permite dizer, de forma meramente poética e subjetiva, que ele nasceu sob o signo do exílio, ainda que interior.

Estamos falando de sua primeiríssima infância, do nascimento aos 2 anos e, sem enveredar por delírios psicanalíticos, mas dando mais rédeas a fantasias poéticas, pode-se pensar nessa primeira infância como num paraíso surgido nos escombros ainda incandescentes da escravização e de um sistema oligárquico rural decadente, cujas reminiscências ainda podem ser percebidas hoje não só no Nordeste, mas em todo o país.

Temos um brevíssimo relato de fragmentos desse período no texto inconcluso que Mário escreveu durante seu último exílio em Paris, chamado “A pisada é esta”. O texto de poucas páginas seria um início de biografia, que na execução é interrompido por uma reflexão filosófica, mas na prática esse esforço autobiográfico acabou sendo interrompido pela retomada de atividades significativas com a posterior volta ao Brasil. Entre essas atividades, talvez a mais relevante seria a participação na organização do Partido dos Trabalhadores. Ainda que inconcluso, “A pisada é esta” permite vislumbrar um pouco do cenário do engenho.

Seguindo a linha do tempo, de volta à capital da Paraíba, onde seu pai retoma a vida política e funções públicas, Mário terá um período de “normalidade” dos 2 aos 13 anos, e, além dos estudos em mais de um colégio, o que se sabe é a propensão dele a um comportamento irrequieto e indisciplinado. Esse foi o motivo que teria levado seu pai a decidir por mandá-lo a estudar na Europa, mais precisamente na Bélgica, num colégio católico. Como era comum, ele viajaria num grupo de cinco jovens e um tutor, o escritor José Vieira.

Nessa viagem, podemos dizer, quase um rito de passagem, alguns percalços se acumulam, como a doença do tutor que retém o grupo em Portugal, escala no caminho para a Bélgica. Alojados numa quinta, José Vieira escreverá um livro chamado Sol de Portugal : chronica da Beira Alta, em que descreve, exaustiva e detalhadamente, num tom que hoje parece por demais parnasiano e exagerado, a paisagem e o ambiente, mas até onde li não há nenhuma menção aos jovens, que vagavam desocupados durante sua convalescença. Depois, com o início da Primeira Guerra Mundial, uma mudança de planos se fará necessária, e em vez de ir para um colégio católico na Bélgica, Mário segue para um instituto protestante na Suíça, o que desagradará seu pai, o distanciará do fervor católico habitual em sua família e fortalecerá seu espírito crítico.

Quando volta a Portugal em 1915 e atravessa a França num trem lotado de soldados e de feridos de guerra, terá o jovem Mário captado um pouco do horror da guerra? A volta ao Brasil se dá por mar num navio que às vezes tinha de se camuflar no escuro da noite, para evitar ataques de submarinos. Que aprendizado se tem do medo de ser bombardeado ou, no caso, torpedeado? Teria sido esse o fator que o tornaria, em suas próprias palavras, “muito patriota, muito a favor dos franceses e exaltadamente contra os alemães”?

Dainis Karepovs, em seu livro Pas de politique, Mariô, nos dá algumas pistas dos primeiros autores e oradores que influenciaram o jovem Mário. E mostra, num momento seguinte, a influência notável da revista Clarté.

Não muito tempo depois, outro fato extraordinário teria impacto em sua biografia; a pandemia da gripe espanhola. Não que tenha sido acometido pela doença, mas o tempo livre, o fim da exigência de exame de admissão para a universidade lhe dão os momentos cruciais para a composição de uma vivência livre entre amigos e colegas, em pleno ambiente moderno. É nesse momento que firmará amizade com Lívio Xavier, com Murilo Mendes e Ismael Nery, Antonio Bento e com a família Houston.

Aqui cabe dizer que a importância da influência da família Houston, especificamente de Dona Arinda e das irmãs Celina, Elsie e Mary, na cena artística e intelectual brasileira – e o caso de Elsie, que se casaria depois com o poeta surrealista francês Benjamin Péret, num cenário mais amplo, mereceria uma investigação detalhada e profunda. Para Mário a importância maior desse encontro seria o fato de ter conhecido Mary, sua futura esposa e companheira de toda uma vida.

Entre os anos de 1917 e 1921, a convivência, dentro do espírito moderno, com alguns dos principais personagens da cena artística e intelectual vai fortalecer os laços afetivos que ligam Mário à arte popular e às manifestações que expressam a pluralidade da formação cultural brasileira. É curioso que o reconhecimento da arte popular se dê por pessoas ligadas à vanguarda europeia, e é nesse ponto que a via de comunicação entre os surrealistas na França e os modernistas brasileiros é muito mais uma via de mão dupla do que os nossos reflexos de país colonizado deixam supor. Cabe refletir sobre a diferença dos que valorizam as manifestações artísticas do povo, por seu caráter universal e por suas relações arquetípicas, daqueles que tentam formatar essas manifestações para um projeto de afirmação de uma identidade nacional. No caso dos primeiros, o interesse pela cultura popular não se restringe às fronteiras nacionais, o que levará o casal Elsie Houston e Benjamin Péret a coletar essas manifestações em outros países como o Peru e a Argentina, por exemplo.

Mas voltando aos tempos em que Mário perambulava por círculos boêmios, entre concertos no Municipal e jogos de futebol, esse período, que não por acaso desemboca no ano de 1922, em que as comemorações do centenário da Independência agitam a cidade do Rio de Janeiro, será dos mais férteis na formação cultural brasileira. Nesse mesmo ano se cria o Partido Comunista do Brasil, posteriormente PCB, ao qual Mário se filiará quatro anos depois, em 1926, e sobre o qual já faz desde um primeiro momento reflexões críticas, como se vê na correspondência com Lívio Xavier. A amizade com Mário de Andrade também traz um elemento que será constante na vida de Mário, a capacidade de contribuir com sua capacidade crítica e reflexiva para a obra e o processo criativo de outros, sem necessariamente deixar traços dessa contribuição. Achei curioso encontrar uma referência à frase de Antonio Bento, que afirma ter Mário de Andrade se inspirado muito nas conversas e histórias contadas tanto por Bento quanto por Pedrosa para a construção de Macunaíma. Reconheço algo do humor e da ironia de meu avô, na construção do personagem de Mário de Andrade.

Nos anos que seguem a sua mudança para São Paulo, em 1926, ano em que ingressa no Partido Comunista, temos um dos períodos mais fecundos de sua militância política, como bem detalha Dainis Karepovs em seu livro, Pas de politique, Mariô. Livro, aliás, que usa o título como uma mensagem cifrada que reforça o caráter geralmente restritivo das abordagens, pelos especialistas de cada área, sobre a ligação entre arte e política. Toda a agitação que precede o ano de 1930 é vivida com intensidade, e a atuação junto aos sindicatos será importante no momento posterior em que Mário participa de forma bastante ativa na Frente Única Antifascista. É também o período de suas primeiras prisões, já junto com Mary. São detenções curtas, mas em função da Lei Aníbal de Toledo, de 1927, que declarava ilegal o comunismo, o ambiente se torna bastante inseguro.

Em 1928 Mário é enviado pelo partido para se formar como quadro na escola leninista de Moscou, mas por motivos de doença é impedido de chegar à União Soviética, o que resulta em sua permanência em Berlim de 1928. Ali e em Paris, amplia-se seu contato com o grupo surrealista e com Pierre Naville, assim como sua adesão às teses da oposição de esquerda, contra os rumos do stalinismo.

Essa experiência em Berlim e Paris é marcada também pela frequência à universidade como ouvinte. Aí teria se dado seu primeiro contato com as teorias da Gestalt.

Assim como uma pedra que atirada com destreza em um lago toca várias vezes a superfície, a relação entre arte e psicologia aparecerá a cada certo tempo na vida de Mário. No encontro com o surrealismo, no estudo da Gestalt para a sua tese Da natureza afetiva da forma na obra de arte, em sua contribuição ao trabalho de Nise da Silveira e Almir Mavignier no ateliê do Engenho de Dentro, ou mesmo na influência de seus diálogos com Lygia Clark na fase sensorial da artista.

O que o olhar percebe é o que a razão persegue, poderia se dizer quanto a isso. Essa vinculação entre surrealismo, modernismo, militância, revolução, loucura e expressão terá diversos matizes ao longo da vida de Mário, mas é difícil resumi-la numa equação que formalize ou estabeleça uma valoração rígida entre esses elementos. Talvez seja interessante analisar o sentido de um termo que perpassa esses elementos, transgressão, que de forma elementar significa atravessar algo, como limites ou fronteiras. Esse é essencialmente o ato de liberdade; atravessar os limites impostos por condições socioculturais e históricas ou mesmo pelo mercado, eufemismo do poder econômico, de modismos ou de tentativas de dirigismo por Estados autoritários.

Para compreender a figura de Mário Pedrosa e a importância de seu legado, é fundamental tentar entender o espírito de sua época. No entanto, é no inusitado e no imprevisto que se encontram as chaves para a formação desse “socialista singular”. Essa singularidade não necessariamente é expressão de solidão ou isolamento, mas, ao contrário, é uma construção permanente e coletiva, desenvolvida na amizade, pelo diálogo aberto, às vezes pelo debate franco, entre esses seres singulares que lutaram a vida toda por um mundo mais humano e justo.


* Quito Pedrosa é músico, neto de Mário Pedrosa.

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