Mário Pedrosa e a Frente Única Antifascista (FUA)

Jornal do Povo sobre a Batalha da Sé, 1934

Dainis Karepovs*

Quando o jovem militante do Partido Comunista do Brasil (PCB) Mário Pedrosa foi enviado para cursar a Escola Leninista em Moscou, ele fez uma escala em Berlim. Mas dali, por razões de saúde e, em especial, por ter-se inteirado do que ocorria em Moscou como resultado dos confrontos entre Stalin e Trotsky, sua viagem não mais prosseguiu. Foi nessa estadia na Alemanha, que durou de fins de 1927 a abril de 1929, que Pedrosa pôde ter um contato com o nazismo e as suas milícias e vislumbrar a tragédia que se aproximava. Na Alemanha Pedrosa também assistiu à gestação e à implantação da sectária política do chamado “Terceiro Período”,1Em 1928 a Internacional Comunista proclamou o “Terceiro Período”, o período final do capitalismo, sendo o primeiro (1917-1924) classificado como o de crise do capitalismo e ascensão revolucionária e o segundo (1925-1928) o de estabilização do capitalismo. a qual foi aprovada no 6º Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1928 em Moscou.

Esta nova orientação tinha como pressuposto uma “radicalização das massas”, a qual ensejava a tática chamada de “classe contra classe” e embutia fórmulas do arsenal stalinista como a “frente única pela base”, “o socialismo em um só país” e o “social-fascismo”. Esta última fórmula, que igualava os social-democratas e os fascistas e serviu como vigorosa barreira para alianças com a II Internacional, combinada com a orientação do “Terceiro Período”, fez com que os stalinistas enxergassem revolução e sovietes em qualquer manifestação de massa ou greves sindicais. Trotsky a partir de então passou a alertar ao movimento comunista que o “Terceiro Período”, impedindo a formação de frentes únicas com os social-democratas, abria o caminho para a tomada do poder por parte dos nazistas e seus congêneres. Este conjunto de eventos permitia a clara percepção de como a Internacional Comunista deixara de ser um instrumento para a revolução em escala planetária e se transformara, na imagem de Trotsky, em guarda-fronteiras da União Soviética, fazendo dos partidos comunistas meros joguetes da política externa do estado stalinista.

Depois de uma estadia na França, Mário Pedrosa desembarcou em julho de 1929 no Brasil. Neste retorno, sem deixar de acompanhar o que ocorria na Alemanha, ele se engajou na formação da fração brasileira da Oposição de Esquerda. Neste primeiro momento, os membros da Oposição de Esquerda consideravam-se como uma fração do PCB, por acreditarem ser possível reformar a Internacional Comunista e suas seções e regenerá-los por meio da crítica marxista e do trabalho fracional interno. Desse trabalho de Pedrosa resultou a formação do Grupo Comunista Lênin (GCL), que surgiu publicamente com seu órgão oficial, A Luta de Classe, em 8 de maio de 1930, no Rio de Janeiro.

O GCL teve vida curta, de menos de um ano. Durante este período Pedrosa e seus camaradas dedicaram-se, através das páginas de A Luta de Classe, a debater a orientação política e sindical do PCB, bem como expor as principais diretrizes da Oposição de Esquerda. Sua principal contribuição nesse momento foi compreender e explicar a realidade brasileira, feita através de um texto de Mário Pedrosa e Lívio Xavier que se tornaria um marco na história do marxismo no Brasil: “Esboço de análise da situação brasileira”, o qual alicerçou teoricamente as teses da Oposição de Esquerda sobre o Brasil. Nele foram traçadas pela primeira vez as diferenças fundamentais de análise dos oposicionistas com as teses do Partido Comunista do Brasil. “Esboço…” ultrapassava as formulações e a visão simplista do PCB, tomadas dos modelos da Internacional Comunista para os chamados “países coloniais e semicoloniais”, que viam no Brasil apenas confrontos entre campo e cidade, entre conservadores e progressistas, entre imperialismo inglês e americano. Com um maior crescimento da organização em São Paulo, o GCL deixou de existir e em seu lugar foi fundada a Liga Comunista do Brasil, em ato ocorrido em duas assembleias, realizadas nos dias 21 e 22 de janeiro de 1931, em São Paulo.

Mário Pedrosa testemunhou a derrota militar da oligarquia paulista na sua mazorca constitucionalista de 1932 no início de outubro daquele ano, à qual imediatamente se seguiu a criação da Ação Integralista Brasileira (AIB), partido de ideologia fascista. Este fato, associado ao que se passava na Europa e em especial na Alemanha, fez com que a Liga Comunista do Brasil introduzisse um novo elemento em sua ação política: a construção de uma frente única de organizações de esquerda para barrar o caminho do fascismo no Brasil. Com a ascensão de Hitler ao poder, em reunião da Comissão Executiva da Liga, em São Paulo, aprovou-se a proposta de criação da Frente Única Antifascista.

Pouco depois, em fevereiro de 1933 foi lançado um livro fundamental para esta nova política: Revolução e contrarrevolução na Alemanha. Tratava-se de uma coletânea de textos de Leon Trotsky sobre a luta antifascista na Alemanha, que foi organizada, traduzida e prefaciada por Mário Pedrosa.

Frente à paralisia da Internacional Comunista, que insistia na correção de suas posições em referência à sua política para a Alemanha e na manutenção da política do “Terceiro Período”, os oposicionistas resolveram tomar iniciativas no sentido de romper a inércia. No caso brasileiro, os membros da Liga Comunista divulgaram em abril de 1933 uma carta aberta ao PCB, “Em defesa do proletariado alemão”. O documento, após chamar os stalinistas à responsabilidade frente ao quadro de então, apresentava uma plataforma de seis pontos, mas que fundamentalmente se reduziam a dois: a convocação de um congresso extraordinário da Internacional Comunista e a criação de uma organização antifascista.

Para este último ponto o documento propunha a imediata realização de atos antifascistas e indicava seus integrantes (“todas as organizações políticas antifascistas, de caráter democrático, como as ligas antifascistas italianas ou alemãs, ligas dos direitos do homem, organizações proletárias, independentemente de sua tendência política”2“Em defesa do proletariado alemão”. A Luta de Classe (Órgão da Liga Comunista S.B. da O.I.E.). São Paulo, nº 11, abr. 1933, p. 3 e 4.), retomando a política de frente única proletária aprovada no IV Congresso da Internacional Comunista, proposta que a Oposição de Esquerda já vinha defendendo desde antes da chegada de Hitler ao poder.

Ao final do documento os trotskistas estabeleciam um prazo de resposta aos stalinistas, os quais não se deram ao trabalho de responder. Frente a isso, os trotskistas decidiram tomar em suas mãos a iniciativa.

Além disso, mas não menos importante, a partir da proposta de um exilado italiano, Goffredo Rosini, então militante da Liga Comunista do Brasil, criou-se um jornal antifascista. Feito por militantes da Liga e aberto a simpatizantes da luta contra o fascismo, O Homem Livre teve seu primeiro número lançado em 27 de maio de 1933 e tinha como objetivo construir e apoiar a Frente Única Antifascista. Tanto seu redator-chefe, o jornalista Geraldo Ferraz; como seu gerente, o advogado José Isaac Pérez, eram simpatizantes e o secretário do jornal era o militante da Liga Comunista Fúlvio Abramo.

Em suas páginas, ao longo de seus 22 números, publicados entre 1933 e 1934, escreveram Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Goffredo Rosini, Fúlvio Abramo e outros, às vezes ocultos por pseudônimo, entre os militantes, e Geraldo Ferraz, José Pérez, Amadeu Amaral Júnior, Silveira Bueno, Fernando Mendes de Almeida, Eneida, Francesco Frola, Ivone Galdo, Elsie Houston Péret, Eloy Pontes, José Jobim e outros também sob pseudônimo, entre os simpatizantes e militantes de outras correntes. As colaborações não se restringiram apenas ao combate político contra o fascismo, mas também se voltavam à defesa da democracia em todos os campos contra o obscurantismo fascista. Mário Pedrosa, por exemplo, além de textos sobre política exterior e nazismo, publicou nas páginas de O Homem Livre, aquela que é considerada a sua primeira crítica de arte, sobre Kaethe Kollwitz.

Depois de uma assembleia preparatória com mais de 500 pessoas, ocorrida na semana anterior, em 25 de junho de 1933 constituiu-se a Frente Única Antifascista, em uma reunião presidida pelo socialista italiano Francesco Frola. A ela aderiram onze organizações, mais os periódicos O Homem Livre, A Rua, O Socialismo, A Lanterna, A Plebe e O Brasil Novo. Afora os stalinistas, os quais, mesmo convidados, não compareceram, a esquerda se fez representada em todos os seus matizes. Os oposicionistas, no entanto, se esforçaram para que os comunistas se engajassem na FUA e isto ocorreu pela primeira vez no tradicional comício de 14 de julho de 1933. Ali foi lido o manifesto inaugural da FUA, aprovado por todas as organizações, que tratava do caráter do fascismo e das possibilidades de seu desenvolvimento no Brasil.

O documento também apresentava os seus breves estatutos, em que se sintetizavam seus objetivos e métodos de ação:

1. Sob a denominação de Frente Única Antifascista coligam-se em São Paulo, sem distinção de credos políticos ou filosóficos, todas as organizações antifascistas, com estes objetivos comuns:

a) combate às ideias, ao desenvolvimento e à ação do fascismo;

b) luta pela mais ampla liberdade de pensamento, reunião, associação e imprensa;

c) reivindicação da garantia do ensino laico e da separação da Igreja do Estado;

d) formação de um bloco unitário de ação contra o fascismo.

2. Todas as organizações coligadas conservarão a sua plena autonomia e inteira liberdade de crítica. Os atritos que se verificarem entre as organizações, fora da esfera da ação antifascista, nunca poderão servir de motivo para o rompimento da Frente Única. A estabilidade desta será garantida por um programa comum de ação, em cujo desenvolvimento não se ferirão os pontos de divergência ideológica existentes entre as organizações coligadas.3“Manifesto da Frente Única Antifascista ao povo do Brasil”. O Homem Livre. São Paulo, ano I, nº 8, 17/07/1933, p. 6.

Nesse meio tempo ocorreu uma importante mudança na Liga Comunista do Brasil. A FUA permitiu que a Liga encabeçasse uma série de iniciativas que deram base a uma ampliação da influência das ideias trotskistas no Brasil. Auxiliou nesta penetração a conjuntura política nacional, na qual se desenrolava o processo de elaboração de uma nova constituição para o país, e a internacional, quando, ao longo de 1933 e 1934, uma série de eventos em Cuba, na Áustria, na França, na Espanha, mostrava a disposição do movimento operário internacional em não deixar que a experiência alemã se repetisse.

Quando as posições da Internacional Comunista em defender a política que permitiu a chegada de Hitler ao poder ainda eram renitentemente mantidas, em julho de 1933 Trotsky deu-se conta de que era impossível sustentar a postura de regenerá-la. Era necessário preparar o caminho para uma nova Internacional. Assim, após a realização da Segunda Conferência Nacional (Extraordinária) da Liga – ocorrida em São Paulo, em 1º de outubro de 1933, quando foi ratificada a posição deliberada em setembro pela Oposição Internacional de Esquerda em favor de novos partidos e da IV Internacional –, a nova Liga Comunista Internacionalista (bolcheviques-leninistas) (LCI) se considerou um partido e não mais uma facção do PCB, os militantes trotskistas brasileiros se deram conta que seu trabalho na FUA já era a ação política de um partido.

Essa ação prosseguiu no campo sindical com a formação da Coligação dos Sindicatos Proletários de São Paulo. Esta era uma organização equivalente à FUA no campo sindical, formada no segundo semestre de 1933 e que agrupava entidades sindicais que tinham mais proximidade com as ideias antifascistas e não estavam nas esferas de influência do stalinismo ou do anarquismo.

As manifestações da FUA prosseguiram. A partir de então com uma nova característica: a da ida às ruas e dos enfrentamentos físicos com os fascistas. Antes disso os confrontos haviam sido entre os manifestantes antifascistas e a polícia. Esta nova configuração passou a ocorrer nas manifestações de 14 de novembro de 1933, 15 de dezembro de 1933, 25 de janeiro de 1934 e 1º de maio de 1934. Nelas tanto ocorreram tentativas de dissolução de manifestação da FUA por parte dos integralistas como houve a convocação de manifestações por parte dos integralistas em que os antifascistas resolveram convocar contramanifestações para o mesmo dia, levando os fascistas a cancelar as manifestações pré-convocadas.

A FUA, com vistas à evidente escalada da violência por parte dos fascistas, organiza sua estrutura de defesa, criando a Federação dos Grupos de Defesa. Esta, em manifesto anunciando o seu aparecimento, datado de 26 de dezembro de 1933, declarava que nenhuma das agressões perpetradas pelos fascistas ficaria sem resposta: “Olho por olho, dente por dente. É a lei do selvagem, que os fascistas de todos os países na sua brutalidade ressuscitaram e tornaram necessária.”

Os comunistas, alegando que haviam sido abandonados frente à repressão durante o comício de 25 de janeiro de 1934, afirmação que nunca correspondeu aos fatos, pois todos os presentes ao Largo da Concórdia tiveram de enfrentar a repressão indistintamente, lançaram um manifesto abandonando a Frente Única Antifascista. Mário Pedrosa foi incisivo em seu comentário sobre a deserção dos stalinistas das fileiras da FUA:

Os teóricos do social-fascismo voltam assim ao pântano sombrio de onde se arriscaram a sair e onde as fosforescências de seu revolucionarismo se mostram cada vez mais tênues e esquivas. Na luta contra o fascismo, na defesa das liberdades democráticas, que hoje só beneficiam os oprimidos em luta pela sua emancipação, não há lugar para os que passivamente acreditam em verdades reveladas, em dogmas erigidos à custa de falsificação e mentira. Persistir nos erros que levaram à catástrofe alemã não seria agora apenas uma capitulação, mas uma traição deliberada à causa das classes trabalhadoras que respondem perante a história pela sorte de toda a humanidade.4“Coerência na deserção”. O Homem Livre. São Paulo, ano I, nº 22, 24/02/1934, p. 1.

Estas idas e vindas dos stalinistas devem ser compreendidas no contexto de um vácuo no qual se inseriu sua atuação depois da ascensão do poder dos nazistas na Alemanha. Embora ainda formalmente inseridos na orientação do “Terceiro Período”, as pressões que os stalinistas sofreram por parte de suas bases em todo o planeta, descontentes com aquela orientação e decididas a impedir que os fascistas pudessem repetir mais sucessos em outros países, os levaram a tatear alianças com setores da esquerda na busca de saídas.

A FUA, pouco depois do comício de 25 de janeiro, sofreu um grave contratempo: o fechamento de O Homem Livre por falta de recursos econômicos.

Mesmo assim, os antifascistas mantiveram-se coesos. Como ocorrera na manifestação de 15 de dezembro de 1933, os antifascistas, ao serem informados que os integralistas pretendiam realizar uma manifestação em 1º de maio de 1934, imediatamente tomaram a iniciativa de resposta. Desta vez, em razão da data, a FUA foi acompanhada pela Coligação dos Sindicatos Proletários de São Paulo e a Coligação das Associações Proletárias de Santos. Depois de sucessivas negativas das autoridades por locais públicos, os organizadores persistiram na sua demanda e o comício acabou se realizando no pátio do Palácio das Indústrias, no Parque D. Pedro II. Mesmo assim, a FUA conseguiu reunir mais de três mil pessoas, multidão que há anos não se via em um 1º de Maio em São Paulo. E, mais uma vez, sem a presença dos comunistas. E, como ocorrera anteriormente, os fascistas acabaram cancelando o desfile que haviam planejado.

Ali fizeram uso da palavra os representantes do Sindicato dos Contadores, dos Profissionais do Volante, dos Tecelões de São Paulo, dos Operários Barbeiros e Cabeleireiros, dos Empregados em Hotéis, da União dos Trabalhadores Gráficos, dos Bancários, dos Empregados do Comércio, o deputado classista Waldemar Reikdal, o Partido Socialista Brasileiro de São Paulo, a Frente Única Antifascista e a LCI – Liga Comunista Internacionalista. Mário Pedrosa, como dirigente da LCI, usou da palavra. A Luta de Classe assim narrou o evento:

O representante da Liga dos Comunistas Internacionalistas, que teve a palavra em virtude de estar a nossa organização coligada à Frente Única Antifascista, levantou veemente protesto do nosso partido contra a teia de safadezas, tapeações e mentiras da polícia burguesa, que localizara a manifestação proletária de Primeiro de Maio, ainda como fazendo favor, naquela espelunca oficial, o Palácio das Indústrias, onde funcionava o “bordel do trabalho” que é o Departamento Estadual do Trabalho. Nosso representante passou em seguida a dissecar o fascismo, como forma do domínio capitalista, e como a organização da violência burguesa contra qualquer veleidade de organização do proletariado como classe, o que coloca, para a classe operária, a necessidade de lutar intransigentemente pelas liberdades democráticas, lutando, assim, pela própria existência e desenvolvimento de suas organizações. Mostrou os perigos da torpe demagogia fascista, arrastando a pequena-burguesia, os lumpemproletários e mesmo certas camadas inconscientes do proletariado, para, organizados militarmente e mantidos pelo capital financeiro, ameaçarem de morte todas as organizações do proletariado. Relembra as dolorosas e recentes derrotas do proletariado alemão e do proletariado austríaco, para mostrar a necessidade imprescindível e urgente da aplicação de uma política de frente única do proletariado contra o fascismo, particularizando a sua expressão nacional, o integralismo. Frisa que o proletariado deve lutar contra o fascismo, não simplesmente porque este seja um regime violento, mas, principalmente, pelo que ele contém de reacionário.

Levanta a iniciativa da organização da Milícia Operária afim de que a luta contra o fascismo perca o seu caráter platônico e se torne uma realidade concreta.

Desfraldou, por fim, a bandeira da Quarta Internacional, de que a nossa organização, a Liga dos Comunistas Internacionalistas (Bolcheviques-Leninistas), é aderente resoluta, o que, tomando o lugar abandonando pela Segunda e pela Terceira Internacionais, conduzirá o proletariado mundial às suas vitórias definitivas e alargará as fronteiras da pátria socialista a todo o mundo.5“Ampla frente única de classe em 1º de Maio de 1934”. A Luta de Classe. Órgão da Liga dos Comunistas Internacionalistas – Seção Brasileira da Liga Comunista Internacionalista (Bolcheviques-Leninistas). Rio de Janeiro [São Paulo], ano IV, nº 20, maio de 1935 [sic. 1934, dk], p. 2 e 3.

Mas sem dúvida a mais notável ação da FUA foi a contramanifestação de 7 de outubro de 1934 na Praça da Sé. Mais uma vez, ao serem informados que os integralistas pretendiam fazer naquela data um ato público para comemorar o segundo aniversário da criação de sua organização, os trotskistas, reunidos na sede da União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo, decidiram que não se deveria permitir de nenhum modo sua realização. Pretendiam com isso, como o fizeram nazistas e fascistas, os seguidores de Plínio Salgado conquistar as ruas. Imediatamente a FUA foi acionada para que as demais organizações se posicionassem a respeito, inclusive os comunistas. Conseguido o acordo para a realização da contramanifestação, as organizações passaram a estabelecer os procedimentos “militares” que nela adotariam. No entanto, estes foram feitos separadamente entre socialistas, comunistas e trotskistas, com cada um dos grupos tendo a sua “tática” e tendo independência para tal frente aos demais para a ação, mas sempre coesos no ataque ao fascismo. Nessas negociações Mário Pedrosa, tanto como dirigente da FUA como da LCI, teve um papel de destaque nas negociações com os comunistas.

Quando os integralistas começaram a chegar à Praça da Sé, iniciaram-se as escaramuças e logo que Fúlvio Abramo, conforme estabelecido nas reuniões preparatórias, abriu o comício em nome da FUA, começou uma enorme fuzilaria, que durou quatro horas. Houve dezenas de feridos, entre eles Mário Pedrosa, e ao menos quatro mortos, três policiais e um militante da Juventude Comunista, o estudante Décio Pinto de Oliveira. Internado na Santa Casa, Pedrosa deu declarações à imprensa: “O movimento foi de reação espontânea das massas diante da parcialidade escandalosa da polícia, que enquanto protege comícios e desfiles integralistas, nega sistematicamente aos operários o direito de se manifestarem publicamente contra os elementos adversos.” Como afirmara posteriormente um de seus participantes: “Foram quatro horas de ditadura do proletariado.”

Foi este um momento de grande entusiasmo para os trotskistas brasileiros. Houve, como consequência dele, um incremento no número de militantes, assim como a ampliação de sua influência nos sindicatos.

No entanto, veio o anticlímax. Em fins de 1934 a LCI sofreu uma cisão em torno da questão conhecida como “entrismo”. Para Trotsky o fato de declarar-se morta a Internacional Comunista não significava a imediata criação de uma nova Internacional, pois as forças a seu lado ainda eram muito fracas. Para isso seria necessário agrupar contingentes de outros campos e conquistá-los para criar a IV Internacional. Assim eram necessários entendimentos diretos com algumas forças ou, então, outras formas de atuação, como a tática do “entrismo”, na qual os trotskistas entravam nos partidos socialistas a fim de conquistar para suas posições os setores mais à esquerda destes partidos.

Iniciada na França e depois estendida a outros países, esta tática, se resultou em crescimento das organizações trotskistas, por outro lado provocou rejeições nas fileiras trotskistas, sendo classificada por seus críticos como “capitulação diante do reformismo”, “abandono do leninismo”, “adesão às posições da II Internacional”. No Brasil, o “entrismo” provocou as mesmas reações e fez surgir um importante grupo, o qual também se posicionara contra o enfrentamento armado do 7 de Outubro. Este grupo rompeu com a organização brasileira e o Secretariado Internacional. Este, por sua vez, no exame das discussões, acabou definindo-se em favor do grupo que se reuniu em torno de Mário Pedrosa. Posteriormente, muitos deles voltaram às fileiras da Liga.

Enfim, foi sob este duplo influxo praticamente simultâneo que os trotskistas brasileiros viram desaparecer a Frente Única Antifascista. De um lado, uma crise interna frente à qual os trotskistas, pelas suas diminutas forças militantes, não foram capazes de fazer frente, sendo por ela tragados e consumidos. De outro, o do surgimento de uma nova orientação política, a “Frente Popular”. Esta foi a forma da qual a Internacional Comunista fez uso para substituir a linha do “Terceiro Período”. Por meio dela, sem fazer críticas aos erros anteriormente cometidos, a IC propiciou a Stalin uma nova linha política. Ela foi capaz de “desviar os trabalhadores de uma frente somente com seus partidos operários e de fazer deles um componente da política de busca por alianças com (…) burgueses de todos os países dispostos a se opor ao expansionismo alemão. Uma política que não tinha por eixo a revolução (…), mas já a guerra”.6BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista, 1919-1943. Vol. 2. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 831.

A “Frente Popular” foi consubstanciada no Brasil através da Aliança Nacional Libertadora, que galvanizou o movimento dos trabalhadores brasileiros e atraiu para suas fileiras parte significativa das organizações políticas e sindicais, inclusive alguns dirigentes e militantes da própria LCI, agravando ainda mais sua crise interna, e frente à qual os seguidores de Leon Trotsky, já enfraquecidos pela cisão, não foram capazes de se contrapor.

Em que pese o seu fim, não se pode esquecer a contribuição dada pela FUA no sentido de mostrar aos trabalhadores a importância de sua união no combate ao fascismo. Aliás, não é de pouca monta que uma pequena organização política fosse capaz de obter a adesão de outras 42 entidades e órgãos de imprensa durante este processo, refletindo o mais amplo espectro da esquerda brasileira de então.7Bandeira dos 18, Brascor, Centro de Cultura Social, Coligação Confederacionista, Coligação Proletária de São Paulo, Comitê Antiguerreiro de São Paulo, Comitê Estudantil Antiguerreiro, Comitê de Luta Contra as Guerras Imperialistas, a Reação e o Fascismo, Comitê das Mulheres Trabalhadoras, Federação das Juventudes Comunistas, Frente Negra Socialista, Grêmio Universitário Socialista, Grupo Antifascista Italiano Italia Libera, Grupo Socialista Giacomo Matteotti, Legião Cívica 5 de Julho, LCI – Liga Comunista Internacionalista / Liga Comunista do Brasil, Liga Contra os Preconceitos de Raças e Religiões, Partido Comunista do Brasil, Partido Socialista Brasileiro de São Paulo, Partido Socialista Italiano, Socorro Vermelho Internacional, União Operária e Camponesa, Coligação das Associações Proletárias de Santos, Coligação dos Sindicatos Proletários de São Paulo, Federação Operária de São Paulo, Federação Sindical Regional de São Paulo, Sindicato dos Bancários, Sindicato dos Contadores, Sindicato dos Empregados do Comércio, Sindicato dos Empregados em Hotéis, Sindicato dos Operários Barbeiros e Cabeleireiros, Sindicato dos Tecelões de São Paulo, União dos Alfaiates e Anexos, União dos Operários em Fábricas de Tecidos, União Sindical dos Profissionais do Volante, União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo, O Brasil Novo, O Homem Livre, A Lanterna, A Plebe, A Rua, O Socialismo, Vanguarda Estudantil. E, mais importante, como ressaltou Fúlvio Abramo, se a FUA não foi capaz de “esmagar” o integralismo, ela impediu efetivamente que “a ditadura getulista se servisse dele como ponta de lança de seus próprios desígnios hegemônicos e autocráticos”.8ABRAMO, Fúlvio. A revoada dos galinhas verdes: Uma história da luta contra o fascismo no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2014, p. 13. Isto porque tanto nos casos em que os integralistas desistiam de promover suas marchas como, principalmente, quando foram surrados em praça pública, ficava clara, tanto a Vargas como aos brasileiros, a impossibilidade de sua utilização como instrumento de poder.

É uma lição que não deve ser esquecida e que nos foi legada pelo cara que não mudou e seus camaradas.


* Dainis Karepovs é mestre e doutor em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Coautor, com Fúlvio Abramo, de Na Contracorrente da História (Sundermann, 2015) e autor de Pas de politique Mariô! Mário Pedrosa e a política (Ateliê; Editora da Fundação Perseu Abramo). Este texto é uma versão resumida da apresentação feita no dia 05/10/2020 no seminário “Homenagem a Mário Pedrosa, 120 anos”, organizado pelo Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília e pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica do Departamento de História da Universidade de São Paulo, na mesa “Mário Pedrosa: Fascismo, bonapartismo e as ditaduras brasileiras”.

Notas

  • 1
    Em 1928 a Internacional Comunista proclamou o “Terceiro Período”, o período final do capitalismo, sendo o primeiro (1917-1924) classificado como o de crise do capitalismo e ascensão revolucionária e o segundo (1925-1928) o de estabilização do capitalismo.
  • 2
    “Em defesa do proletariado alemão”. A Luta de Classe (Órgão da Liga Comunista S.B. da O.I.E.). São Paulo, nº 11, abr. 1933, p. 3 e 4.
  • 3
    “Manifesto da Frente Única Antifascista ao povo do Brasil”. O Homem Livre. São Paulo, ano I, nº 8, 17/07/1933, p. 6.
  • 4
    “Coerência na deserção”. O Homem Livre. São Paulo, ano I, nº 22, 24/02/1934, p. 1.
  • 5
    “Ampla frente única de classe em 1º de Maio de 1934”. A Luta de Classe. Órgão da Liga dos Comunistas Internacionalistas – Seção Brasileira da Liga Comunista Internacionalista (Bolcheviques-Leninistas). Rio de Janeiro [São Paulo], ano IV, nº 20, maio de 1935 [sic. 1934, dk], p. 2 e 3.
  • 6
    BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista, 1919-1943. Vol. 2. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 831.
  • 7
    Bandeira dos 18, Brascor, Centro de Cultura Social, Coligação Confederacionista, Coligação Proletária de São Paulo, Comitê Antiguerreiro de São Paulo, Comitê Estudantil Antiguerreiro, Comitê de Luta Contra as Guerras Imperialistas, a Reação e o Fascismo, Comitê das Mulheres Trabalhadoras, Federação das Juventudes Comunistas, Frente Negra Socialista, Grêmio Universitário Socialista, Grupo Antifascista Italiano Italia Libera, Grupo Socialista Giacomo Matteotti, Legião Cívica 5 de Julho, LCI – Liga Comunista Internacionalista / Liga Comunista do Brasil, Liga Contra os Preconceitos de Raças e Religiões, Partido Comunista do Brasil, Partido Socialista Brasileiro de São Paulo, Partido Socialista Italiano, Socorro Vermelho Internacional, União Operária e Camponesa, Coligação das Associações Proletárias de Santos, Coligação dos Sindicatos Proletários de São Paulo, Federação Operária de São Paulo, Federação Sindical Regional de São Paulo, Sindicato dos Bancários, Sindicato dos Contadores, Sindicato dos Empregados do Comércio, Sindicato dos Empregados em Hotéis, Sindicato dos Operários Barbeiros e Cabeleireiros, Sindicato dos Tecelões de São Paulo, União dos Alfaiates e Anexos, União dos Operários em Fábricas de Tecidos, União Sindical dos Profissionais do Volante, União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo, O Brasil Novo, O Homem Livre, A Lanterna, A Plebe, A Rua, O Socialismo, Vanguarda Estudantil.
  • 8
    ABRAMO, Fúlvio. A revoada dos galinhas verdes: Uma história da luta contra o fascismo no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2014, p. 13.
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