Carta ao sindicalista

Carta de Mário Pedrosa a Lula, 1978. Cemap.

Em agosto de 1978, Mário Pedrosa escreveu uma carta ao então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luiz Inácio da Silva, o Lula. Nesse primeiro contato, o velho militante socialista demonstrava seu entusiasmo com o jovem sindicalista e já antevia o surgimento do Partido dos Trabalhadores, do qual veio a se tornar o filiado número 1. A carta, datilografada, faz parte do acervo do Cemap e está transcrita a seguir:

“Rio, 10 de agosto de 1978

Lula:

Tenho acompanhado com o mais vivo interesse sua atuação no movimento operário e, mais recentemente, no Congresso dos Trabalhadores na Indústria realizado nesta Capital. Por isso valho-me desta carta para lhe testemunhar minha alegria de velho militante socialista pela firmeza, lucidez e combatividade que você demonstrou no transcurso dos seus trabalhos.

Sei que você, cuja liderança vem tomando vulto de norte a sul do país no movimento da classe operária brasileira, não gosta muito de manifestações de intelectuais na vida sindical. Compreendo e respeito sua ojeriza nesse sentido, pois a história desse movimento operário, principalmente no Brasil, está recheada de exemplos de salamaleques, tapinhas nas costas e outros tipos de engodo com que certos “intelectuais”, mormente em vésperas de eleições, procuram bajular os trabalhadores.

Felizmente, desses trejeitos nunca sofri, muito menos, hoje, nesta idade em que não se é mais candidato a nada, a não ser continuar fiel às ideias da mocidade. Esta fidelidade às ideias é o que me faz escrever-lhe esta carta e precisamente na qualidade de intelectual. Para que? Dar-lhe conselhos? Positivamente não. Um jovem militante de sua têmpera, de sua inteligência, de seu devotamento, não é produto feliz do acaso. É um produto necessário da classe operária emergente da nova sociedade brasileira. Formou-se você em São Paulo, no coração mesmo dessa nova classe. Estou certo de que outros como você se estão formando pelo Brasil todo, senão aos milhares, certamente às centenas; breve, estou certo, vamos todos tomar conhecimento deles, já se ouve o reboar desse movimento de classe que sobe das profundezas da terra de Piratininga para os sertões, do Prata ao Amazonas. Esse é o movimento histórico mais importante e fecundo da hora brasileira.

Posso agora sorrir e predizer que o Brasil será um país feliz: a hora da emergência da nova classe operária e da emergência de um Brasil novo, liberto afinal da opressão, coincide. Quando Karl Marx, meu mestre, proclamou no século passado que “a emancipação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores” – esta verdade não se apagou mais da história. Que tinha ele, então, diante dos olhos? Um capitalismo em ascensão, um proletariado em andrajos, e Augusto Bebel, um operário alemão, autêntico como você, fundando o partido operário social-democrático alemão, que iria ser através dos tempos o partido modelo de toda a classe operária europeia, inclusive para Lenine na Rússia bárbara dos czares.

No Brasil um outro panorama começa a levantar-se. De onde se parte? De um regime buro-tecnico-burguês-militar que trouxe com alguns reais progressos, maior miséria e ainda maior opressão. Quais são as forças matrizes da nova situação, capazes de convocar o povo, mobilizá-lo, guiá-lo pacificamente para uma Assembleia Nacional Constituinte eleita soberanamente pelo povo? Esta classe operária que você se empenha, com seus companheiros de trabalho, em organizar em sindicatos livres da tutela do Estado, com plena autonomia, direito de greve, contratos coletivos de trabalho e uma luta intransigente contra o peleguismo.

A Emenda à Constituição que Fernando Henrique Cardoso, candidato ao Senado Federal pelo MDB, acaba de enviar à Presidência de seu Partido para que leve ao plenário do Congresso Nacional, é a iniciativa mais importante e profunda de quantas a Oposição ao atual regime já apresentou. Com ela o Professor Fernando Henrique Cardoso marcou a diferença entre 1945-46 e 1978, isto é, entre a crise do fim da Segunda Guerra e do Estado Novo e a atual, em que se assistem aos primeiros signos da agonia do sistema burocrático-militar que nos governa desde 1964.

Em 1945-46, os democratas, liberais e socialistas chegaram a impor ao candidato anti-Estado Novo que levantasse a bandeira da democracia em sua totalidade, pois na luta pelas liberdades democráticas ali estavam também o direito de greve e a liberdade e autonomia sindical, os liberais e a força de esquerda de 46 já não puderam regulamentar de maneira positiva os belos princípios democráticos inscritos no texto mesmo da Carta Constitucional. E desde então a democracia de 46 ficou capengando e os sindicatos operários atravessaram os anos sem autonomia, amarrados ao Estado, em pleno regime do peleguismo até a submissão final em que o salário deixa de ser o atributo essencial do trabalhador e seu sindicato para ser da exclusiva competência da alta burocracia do Estado e alguns de seus pelegos, tanto os vindos da própria classe operária como outros vindos também do patronato.

O caminho vai afinal sendo liberto para a democracia. Desta vez, não se vai deixar pela estrada os restos da gangrena ditatorial subsistente nos tecidos da democracia, como em 1950. Líderes políticos como nosso amigo comum Fernando Henrique Cardoso, para cuja eleição deverá a classe operária de São Paulo empenhar-se, estão alertas e entregam ao seu Partido, o Partido de Oposição, os meios para extirpar esses cancros da legislação sindical, já agora com a garantia de que o cerne da luta pela emancipação dos trabalhadores do Estado, com suas velhas inclinações fascistas, não será esquecido e assim se criarão as condições ideais para que afinal surja da luta pela redemocratização do Brasil um movimento operário realmente profundo, livre, nitidamente trabalhista dentro do qual todas as forças populares legítimas se vão unir para um só fanal, o socialismo: Movimento dos Trabalhadores pelo Socialismo. Cunha-se assim com a naturalidade das coisas elementares o partido que a consciência proletária de que você e seus companheiros estão imbuídos. Isso é penhor do futuro: fruto das tradições dos mestres, nutrida do sangue dos nossos heróis proletários. Sem a libertação do movimento sindical, é inútil falar-se em liberdade, democracia ou socialismo.

Saudações proletárias do velho companheiro

Mário Pedrosa”

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