Carta 9

9. Carta de notícias enviada por Mário Pedrosa a Lívio Xavier. Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1927. Original. 5 folhas. (Contém marginália nas folhas 3, 4 e 5). [Livio-1927-01-05]

[fl. 1]

Rio, 5-1-27

Livio, estou aqui te escrevendo quase de mala arranjada para ir ao Norte. Deixei São Paulo. O Raphael ficou de ver o teu caso lá. O Bento, pediram o logar a elle.1Pedrosa se refere ao jornalista Rafael Correia de Oliveira e ao crítico de arte e seu amigo Antônio Bento de Araújo Lima, com os quais trabalhava no jornal Diário da Noite, em São Paulo.

Fui nomeado fiscal de consumo… no interior da Parahyba! O meu estado de cretinisação, cujo começo você presenciou e sentiu também quando saiu de São Paulo, tornou-se dynamico e ficou absoluto. Antonio Bento, tambem.

Attingir o sublime para nós éra a cousa mais facil deste mundo. O Di2O pintor Di Cavalcanti, um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. – também chegou a um perfeito estado de cretinisação. Com a companhia de revistas preta – então, deu-se a merda. Descobrimos cousas fabulosas.3A Companhia Negra de Revistas foi a primeira empresa de espetáculos de teatro de revista do país formada por atores e atrizes negros. Foi fundada em 1926 pelo teatrólogo baiano De Chocolat, nome artístico de João Cândido Ferreira, e durou um ano, período em que fez apresentações no Rio de Janeiro, São Paulo (no cineteatro Santa Helena), Minas Gerais e outros Estados. O músico e compositor Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho) foi regente do grupo e o ator Grande Otelo (Sebastião Bernardes de Souza Prata) integrou o elenco por cinco meses. Todas as noites iamos ao Santa-Helena assistir a mesma cousa. Batissei logo sobre isso uma metaphysica de grandes arroubos. Ficamos apaixonados por varios pretos. O Antonio Bento então quasi segue com a companhia pra Araraquara. Eu aconselhei elle a fazer isso. Era a solução brasileira, como Rimbaud na França.

Projectamos (Di, Antonio, o Bopp4O poeta modernista Raul Bopp, um dos principais nomes do Movimento Antropofágico. e eu) a formação uma companhia, aproveitando os melhores elementos da companhia, e seguirmos de matto a dentro, correndo todo o Brazil (o Bopp chegou a fazer o itinerario) apanhando moti-

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vos de arte negra, descobrindo artistas ignorados e inconscientes, creando numeros fabulosos, até poder ao cabo de um anno, de villa em villa, saltimbancos authenticos, chegar ao Rio, com uma companhia de bailados, authenticamente negros – brazileiros. Do Rio, iriamos a Paris e de Paris, a Moscou. Todos nós tinhamos funcções determinadas. O Bopp seria o poeta e o gerente da empresa. O Di – o coreographo, metteur-en-scéne, decorador e dansarino, no fim. Dona Maria, a mulher do Di, acompanharia a troupe. Eu, faria conferencias, quando as cousas estivessem pretas e escreveria peças. Antonio Bento, tambem. Etc etc. Saltimbancos modernos, viajariamos de caminhão Ford, coberto com uma armação adequada. – O plano era magnifico, surrealista, poetico, ultra-romantico. ––

–– Mas não se realisou. ––

Vim para o Rio, deixei o Diario. Agora – vou ao Norte, onde pretendo me demorar uns dois mezes por lá. Vou levar uma sanfona e lá compro uma rêde: não quero outra vida. Antonio planeja ir pra Paris, agora em Fevereiro ou Março, até com 500 ou 600$ por mez. Tenho aconselhado elle que faça isso. Por todo este anno irei tambem. A Mary, a 31 de Dezem

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bro deve ter chegado. Ainda não se recebeu noticias della senão de Dakar. A Elsie me pediu para lhe mandar um longo abraço. Aqui tenho estado com elles e com o Ismael e o grupo nativo delle. O Ismael ja me deu quadro para ciúme e desespero do Murillo.5As irmãs Mary e Elsie Houston, o artista plástico Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes, amigos de Pedrosa e Lívio Xavier.

A Nação, aquelle antigo jornal do Leonidas, reappareceu, mas comunista. O Leonidas adheriu ao partido. Ja sairam dois numeros. Estão fracos, mas espero que melhore. O Brandão e o Astrojildo estão trabalhando nelle.6O jornal oposicionista A Nação, do professor de Direito Leônidas Rezende, começou a circular no Rio em 1923, mas foi fechado pelo governo em 1924. No fim de 1926, Leônidas propôs aos comunistas retomarem sua publicação, com total liberdade. Assim A Nação voltou às ruas em 1927, como órgão do PCB. Seus principais redatores eram os fundadores e dirigentes do partido Astrojildo Pereira e Otávio Brandão. Em agosto do mesmo ano, a decretação de novas leis de censura à imprensa levou os comunistas a desistirem do jornal.

Ja fui me offerecer. Vou estudar o Ford para escrever a respeito e por os pontos nos ii.

O numero ultimo de Clarté – não recebi ainda. Ja veiu a colleção de L’Esprit. Estou lendo. Quer? Um novo livro do Aragon: Le paysan de Paris.7A Clarté era uma revista de discussão política e cultural de intelectuais internacionalistas. Originalmente ligada aos surrealistas e à 3ª Internacional, a revista começou a se desiludir com o comunismo em 1926. Já L’Esprit Nouveau era uma revista de vanguarda artística de Paris. O livro Le Paysan de Paris, do escritor surrealista francês Louis Aragon, foi publicado em 1926. Não mando pra você porque não ha mais nenhum exemplar: o que tenho foi tomado do Plinio Mello,8O jornalista Plínio Mello conheceu Pedrosa e Lívio Xavier em 1925, em São Paulo, uma amizade que teve papel decisivo em sua definição ideológica. Ele se tornou simpatizante do comunismo e aderiu ao PCB em 1927. Nos anos seguintes, juntou-se aos dois na oposição de esquerda. Plínio teve uma longa trajetória política e em 1980 foi um dos fundadores do PT. Em 1978, ele estimulou Pedrosa a escrever uma carta a Lula defendendo a criação de um partido dos trabalhadores e foi o responsável por entregá-la ao líder sindicalista. que deixei em São Paulo, completamente cretinisado e communista. O Aristides, em São Paulo, faz poemas, genero Martinet e Peret.9O jornalista Aristides Lobo, militante do PCB desde 1923, com quem Pedrosa manteve longa amizade. Na época, Aristides organizava a Juventude Comunista em São Paulo. Mais tarde, ligou-se à oposição de esquerda e aos trotskistas. Pedrosa faz uma comparação com o escritor Marcel Martinet, militante do PC Francês e diretor literário do jornal do partido, o L’Humanité, e com o poeta surrealista Benjamin Péret, de quem ficaria amigo mais tarde.

O livro de Aragon é magnifico: ha porem paginas cacetes, muito cacetes. Escrevi pra elle. Procura no ambiente urbano de Paris – o sentido da natureza e entra a querer descobrir uma mythologia moderna.

Na margem esquerda: P.S. Uma cousa: estou sempre por te perguntar. Aquella minha bolsa de mão, você levou?

Ella não era minha, mas de minha irmã que tem muito ciume nella porque foi do marido, meu cunhado, morto em 1922. Me diga alguma cousa a respeito. Pois não sei onde ella paira.

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Recebi o ultimo numero da Révolution Surrealiste. Está bom. Neste – vem Légitime défense, do Breton.10Ao longo de 1926, os surrealistas que tinham aderido ao PC francês pressionaram o restante do grupo a fazer o mesmo. Em setembro, André Breton, um dos líderes do movimento, escreveu Légitime Défense, publicado em dezembro na revista La Révolution surréaliste. No artigo, ele explicava a hesitação e apontava temores de que a entrada no PC implicasse uma perda de autonomia artística. Curiosamente, em janeiro de 1927 Breton e outros companheiros, como Aragon e Péret, entraram no PCF. ––

Isso aqui está pau. Perdi o estado de graça de cretinisação absoluta em que permaneci estes ultimos tempos em São Paulo.

––

Agora vou falar sobre seu caso. Si quiser, quando puder vir, venha. Acredito que é facil arranjar um jornal pra você trabalhar. O Zé Vieira vae, com o Facó, me arranjar pra trabalhar aqui.11O escritor e crítico literário José Geraldo Vieira e o poeta surrealista e jornalista Américo Facó. Estou com uma baita saudade de você. ––

Falei com o Hahnemann (vae fazer concurso para Direito Romano) a seu respeito: me disse que em Abril lhe arranjaria um logar no Pedro 2º.12O jurista Hahnemann Guimarães, muito ligado às ideias positivistas, foi contemporâneo de Pedrosa e Lívio na Faculdade de Direito, no Rio. Nesta época, era professor no Colégio Pedro II. Isso éra certo. – Vou para o Norte agora; de lá escreverei a você – Espero que o seu pae esteja melhor e que a coisa de desanimo que abateu seu irmão ja tenha passado e os negocios ja estejam normalisados. Faço votos para que breve você possa, sem constrangimento, voltar. Você não deve esquecer a sua saúde: como vae ella? Tem-se tratado?

Na margem esquerda: Recommende-me aos seus.

Em qualquer epoca que você queira vir, venha, e o que os seus amigos poderem

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fazer por você, farão. Todos lamentam a sua ausencia e comprehendem a imensa difficuldade de sua situação. Isso tudo é horrivel, eu imagino o que você tem soffrido, sob todos os pontos de vista. O Castro,13O professor Edgar de Castro Rebello, que entrou no PCB em 1925. O grupo que ele reunia na Faculdade de Direito, Lívio incluído, foi responsável por um dos primeiros contatos de Pedrosa com o marxismo. depois que cheguei, vi, uma vez. Antes de partir vou estar com elle e fallarei sobre você.

–– Vae ser fundada uma sociedade dos amigos da Russia, semelhante a que ja existe em Buenos Ayres. Fins: propaganda da Russia nova, conferencias, livros, concertos, uma revista: a Russia Nova, bibliotheca etc (na margem esquerda: Reconhecimento do governo). Os membros do PC della farão parte individualmente, isolados.

No fundo, vae ser ella dirigida indirectamente pelo partido: mas queremos a adesão de todos os burguezes que por interesse, por sentimentalismo, por sympathia, por esthectica, seja o que for, queiram fazer parte. Tenho uma lista que estou enchendo. ––

Creio que por hoje é só o que tenho a dizer pra você. Fiquei com saudades dos amigos de São Paulo. O Antonio te abraça.

O Pires continúa lendo livros grossos, cheios de nota: é cretino (no pior sentido, no sentido grosseiro) e fresco. No dia 3, comeram um jantar – os bachareis de nossa turma. A cousa foi feita pelo Oscar Santos, secundado pelo Hahnemann. Não fui.

Adeus. Saudades e abraços de seu velho

Mario.

Notas

1. Pedrosa se refere ao jornalista Rafael Correia de Oliveira e ao crítico de arte e seu amigo Antônio Bento de Araújo Lima, com os quais trabalhava no jornal Diário da Noite, em São Paulo.

2. O pintor Di Cavalcanti, um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922.

3. A Companhia Negra de Revistas foi a primeira empresa de espetáculos de teatro de revista do país formada por atores e atrizes negros. Foi fundada em 1926 pelo teatrólogo baiano De Chocolat, nome artístico de João Cândido Ferreira, e durou um ano, período em que fez apresentações no Rio de Janeiro, São Paulo (no cineteatro Santa Helena), Minas Gerais e outros Estados. O músico e compositor Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho) foi regente do grupo e o ator Grande Otelo (Sebastião Bernardes de Souza Prata) integrou o elenco por cinco meses.

4. O poeta modernista Raul Bopp, um dos principais nomes do Movimento Antropofágico.

5. As irmãs Mary e Elsie Houston, o artista plástico Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes, amigos de Pedrosa e Lívio Xavier.

6. O jornal oposicionista A Nação, do professor de Direito Leônidas Rezende, começou a circular no Rio em 1923, mas foi fechado pelo governo em 1924. No fim de 1926, Leônidas propôs aos comunistas retomarem sua publicação, com total liberdade. Assim A Nação voltou às ruas em 1927, como órgão do PCB. Seus principais redatores eram os fundadores e dirigentes do partido Astrojildo Pereira e Otávio Brandão. Em agosto do mesmo ano, a decretação de novas leis de censura à imprensa levou os comunistas a desistirem do jornal.

7. A Clarté era uma revista de discussão política e cultural de intelectuais internacionalistas. Originalmente ligada aos surrealistas e à 3ª Internacional, a revista começou a se desiludir com o comunismo em 1926. Já L’Esprit Nouveau era uma revista de vanguarda artística de Paris. O livro Le Paysan de Paris, do escritor surrealista francês Louis Aragon, foi publicado em 1926.

8. O jornalista Plínio Mello conheceu Pedrosa e Lívio Xavier em 1925, em São Paulo, uma amizade que teve papel decisivo em sua definição ideológica. Ele se tornou simpatizante do comunismo e aderiu ao PCB em 1927. Nos anos seguintes, juntou-se aos dois amigos na oposição de esquerda. Plínio teve uma longa trajetória política e em 1980 foi um dos fundadores do PT. Em 1978, ele estimulou Mário Pedrosa a escrever uma carta a Lula defendendo a criação de um partido dos trabalhadores e foi o responsável por entregá-la ao líder sindicalista.

9. O jornalista Aristides Lobo, militante do PCB desde 1923, com quem Pedrosa manteve longa amizade. Na época, Aristides organizava a Juventude Comunista em São Paulo. Mais tarde, ligou-se à oposição de esquerda e aos trotskistas. Pedrosa faz uma comparação com o escritor Marcel Martinet, militante do PC francês e diretor literário do jornal do partido, o L’Humanité, e com o poeta surrealista Benjamin Péret, de quem ficaria amigo mais tarde.

10. Ao longo de 1926, os surrealistas que tinham aderido ao PC francês pressionaram o restante do grupo a fazer o mesmo. Em setembro, André Breton, um dos líderes do movimento, escreveu Légitime Défense, publicado em dezembro na revista La Révolution surréaliste. No artigo, ele explicava a hesitação e apontava temores de que a entrada no PC implicasse uma perda de autonomia artística. Curiosamente, em janeiro de 1927 Breton e outros companheiros, como Aragon e Péret, entraram no PCF.

11. O escritor e crítico literário José Geraldo Vieira e o poeta surrealista e jornalista Américo Facó.

12. O jurista Hahnemann Guimarães, muito ligado às ideias positivistas, foi contemporâneo de Pedrosa e Lívio na Faculdade de Direito, no Rio. Nesta época, era professor no Colégio Pedro II.

13. O professor Edgar de Castro Rebello, que entrou no PCB em 1925. O grupo que ele reunia na Faculdade de Direito, Lívio incluído, foi responsável por um dos primeiros contatos de Pedrosa com o marxismo.

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