Carta 11

11. Carta de notícias enviada por Mário Pedrosa e Plínio Mello a Lívio Xavier e Antônio Bento. São Paulo, provavelmente início de agosto de 1927. Original. 4 folhas.1Carta escrita em folhas de papel timbrado do “Centro de Cultura Proletária – S. Paulo”, frente e verso. [Livio-1927b]

[fl. 1]

Livio Barreto Antonio Bento2O crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima, amigo de Pedrosa.

Vou bancar o Fernão Dias amanhã acompanhado dum italiano almofadinha que usa polainas brancas de cara bonita que nem Antonio Bento. (…) Deve querer ser artista, imaginem: não escapa, eu acho. Desenhista da bandeira. Vamos de Sorocabana adentro até a barranca do rio Paraná. Um mez e tanto de viagem.

Estou morando no quarto do Plinio Mello,3O jornalista Plínio Mello era amigo de Pedrosa e Lívio Xavier desde 1925. Os dois tiveram muita influência em sua trajetória política. Em 1927, ele aderiu ao PCB. Nos anos seguintes, juntou-se aos dois na oposição de esquerda. o poeta. Elle está aqui ao lado pensando em cousas! é fabuloso. Tem sempre uma Icaria na cabeça.4No livro Viagem à Icária, de 1840, o socialista utópico francês Étienne Cabet propunha uma nova sociedade formada por comunas agrárias igualitárias. Cabet chegou a criar uma comuna desse tipo nos Estados Unidos. A palavra Icária foi muito usada para designar esse tipo de comunidade e pode ser que aqui Pedrosa a use em sentido figurado. Está páu.

Depois do almoço é hora de sair por isto não escrevo mais.

Acabo de me levantar (já é o dia seguinte) e estou aproveitando pra continuar a escrever.

Cheguei aqui numa atmosfera de terror. Tinham prendido o Aristides e alguns anarchistas.5O jornalista Aristides Lobo, militante do PCB desde 1923, foi preso em 30 de julho, véspera de um comício em São Paulo que terminou com a prisão de vários participantes, entre eles o líder anarquista Edgard Leuenroth. Porque não vim no dia marcado (domingo, á noite) espalhou-se num instante o boato de que tambem tinha sio preso ao desembarcar! O gorducho [Dimito, palavra não compreensível] seguiu pro Rio nessa triste supposição. etc. O tal Ibrahim está agindo.6Ibrahim Nobre, que assumiu a Delegacia da Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo em 1927. Era muito conhecido pela perseguição a operários e a violência contra presos. O Aristides depois de 36 horas de tortura foi solto afinal, sob a condição do irmão se tornar a sombra delle! Hontem o Plinio esteve com o Aristides e voltou horrorisado com o que ouviu deste. Convem que seja publicada em diversos jornaes uma relação do que Aristides e os outros soffreram na Policia Central. Agora de manhã vou estar com elle e conversarei a

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respeito. Este não pode mais permanecer aqui: deve voltar ahi pro Rio. É preciso que as infamias do Ibrahim sejam delatadas ahi pela Esquerda, A Manhã, e talvez mesmo o Globo e aqui pelo Diario da Noite etc. O Azevedo7O deputado federal João Batista de Azevedo Lima, que se elegera em fevereiro de 1927 com apoio do PCB. teme precisar fallar tambem na Camara com toda a sua retorica. É isto. O Plinio está quasi pedindo pinico. Está vendo que o negocio não é de brincadeiras. Estamos todos na merda: O Livio deve concluir as reflexões Musangula. O Bopp está safado e doido.8O poeta Raul Bopp usa o termo “mussangulá” em seu livro Cobra Norato, de 1931, considerado o mais importante do Movimento Antropofágico. Em Movimentos Modernistas no Brasil: 1922-1928, Bopp o define assim: “É um estado de aceitação, de instinto obscuro, subconsciente, mágico, pré-lógico. Renuncia compreender claramente as coisas. Espécie de preguiça filosófica, de moldura brasileira”. Esta carta sugere que o termo já era usado em 1927 por modernistas e “agregados”.

Hoje, daqui a pouco, parto pro sertão! Ás 8.40, com destino a Botucatú. Vae ser uma merda.

O meu negocio particular parece que se faz. Deixei o Anthenor9O jornalista e político paraibano Antenor de França Navarro, amigo de infância de Pedrosa. encarregado de tratar o negocio em meu nome, pois sou um trouxa. Elle me defende melhor do que eu. Quer dizer que a Europa parece que está mesmo se aproximando.

O Plinio acabará esta: pois preciso de ir jantar.

O Mario foi-se ou se foi (tenho medo do Livio, apesar da emancipação cretinisante delle…) pro sertão. Me deixou esta incumbencia de acabar esta carta pra vocês. Como acabar é sempre mais gostoso, vou procurar levar a cabo a tarefa. Continúo, dizendo que tou (verbo tá, do Bopp) muito safado com o Simas porque elle não me escreveu mais; a minha falta de resposta á carta delle não é razão sufficiente a essa interrupção

[fl. 2]

de correspondencia. Você não acha, Livio? Pois é, elle me escreveu e como eu sou ao mesmo tempo um sujeito muito occupado, ou melhor, preoccupado e tambem preguiçoso, não lhe respondi; vai elle, não me escreve mais! Ora, isso não se faz. Agóra, tambem, os meus cumprimentos pela sua nomeação pra deputado lá pr’uma Duminha do Norte.10Em 1927, Antônio Bento elegeu-se deputado estadual no Rio Grande do Norte. Plínio faz uma brincadeira com Duma, a Câmara Legislativa dos últimos anos do Império Russo (com o fim da URSS, o nome foi retomado). Isso é simplesmente cretino (na accepçao filosophica…) e digno pois, da nossa admiração mais cretinisante. Não posso deixar portanto de juntar os meus parabens, ás poucas felicitações sinceras que elle, você, Antonio Bento, certamente recebeu.

E o manifesto do Mussangulá como vae, Livio? É preciso terminar isso! Certamente vai ser uma grande satisfação pra muita gente que anda a se procurar sem rumo certo. Quando elles cahirem no sublime se libertarão, não ha duvida. E o aspecto politico, isto é, tactico, da theoria é simplesmente fabuloso! Que saia o manifesto e o congresso e vocês vão ver quanta gente adherirá… Mas tratemos de coisa mais momentanea.

Como o Mario disse acima, a coisa aqui tá preta! O barbarismo mameluco dos policiaes paulistas está nos ameaçando com unhas e dentes. O Aristides já foi victima delle. Esteve 32 horas sujeito às maiores torturas a que se póde condemnar um homem que tenha um pouco de sensibilidade que seja! Imaginem vocês, que collocaram elle numa cella de 2m de altura, 2m de comprimento 1m de largo, gelada, sem luz, sem nada, e para cumulo de tudo na companhia de um individuo já amalucado de tanta tortura. Boia “peor que vomito

[fl. 2v]

de cachorro” (textual), café repugnante, intragavel. Mas isso não é nada deante da preoccupação de ficar alli indefinidamente (como lhe foi suggerido pelo agente que o prendeu), e sob o temor daquella companhia desagradavel. Momentos houve nessa noite de tortura, me disse o Aristides, que elle tinha a convicção de que aquelle individuo se atirava nelle, e ao mesmo tempo o Aristides percebia que elle, o sujeito, tinha um terror doido delle, Aristides… Imaginem vocês que coisa páu!… E o frio, então! E a obseção da liberdade! O Aristides disse que nunca desejou tanto o suicidio como nessa occasião. Teve impetos de se lançar no guarda pra ser morto por este. Pra concluir, me disse o Aristides, que é inimaginavel o que elle soffreu; só mesmo sentindo aquillo é que se póde avaliar o que seja!…

Eu acho, com o Mario, que vocês devem fazer o possivel ahi pela divulgação desta coisa. Isso servirá pra desmascarar a hypocrisia desses cretinoides. O mais interessante e revoltante de tudo isso é mesmo a hypocrisia delles. O tal delegado Ibrahim Nobre, quando o Aristides ia ser solto, bancou o espetaculoso, conselheiral, bêsta pra burro, dizendo isto e aquillo em tom oracular. O Aristides discutio com elle e esculhambou. Quasi que se complicou mais…

Vocês me façam o favor de fazer com que a C.C.E. tome providencias no sentido de me ser enviado o A.B.C, Correspondencia (9 e 10 principalmente), Antorcha, etc. A biblioteca do PC aqui, está muito desfalcada e está sob a minha responsabilidade.11CCE era a sigla de Comissão Central Executiva do PCB. Plínio pede o livro ABC do Comunismo, de Ievgueni Preobrajensky e Nikolai Bukharin, publicado pelo PC da União Soviética em 1920. Também quer edições da revista La Correspondencia Sudamericana, órgão do Secretariado Sul-Americano da 3ª Internacional, e do jornal La Antorcha, do PC espanhol.

Bueno, abraços communistas

do camarada

Plinio.

Notas

1. Carta escrita em folhas de papel timbrado do “Centro de Cultura Proletária – S. Paulo”, frente e verso.

2. O crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima, amigo de Pedrosa.

3. O jornalista Plínio Mello era amigo de Pedrosa e Lívio Xavier desde 1925. Os dois tiveram muita influência em sua trajetória política. Em 1927, ele aderiu ao PCB. Nos anos seguintes, juntou-se aos dois na oposição de esquerda.

4. No livro Viagem à Icária, de 1840, o socialista utópico francês Étienne Cabet propunha uma nova sociedade formada por comunas agrárias igualitárias. Cabet chegou a criar uma comuna desse tipo nos Estados Unidos. A palavra Icária foi muito usada para designar esse tipo de comunidade e pode ser que aqui Pedrosa a use em sentido figurado.

5. O jornalista Aristides Lobo, militante do PCB desde 1923, foi preso em 30 de julho, véspera de um comício em São Paulo que terminou com a prisão de vários participantes, entre eles o líder anarquista Edgard Leuenroth.

6. Ibrahim Nobre, que assumiu a Delegacia da Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo em 1927. Era muito conhecido pela perseguição a operários e a violência contra presos.

7. O deputado federal João Batista de Azevedo Lima, que se elegera em fevereiro de 1927 com o apoio do PCB.

8. O poeta Raul Bopp usa o termo “mussangulá” em seu livro Cobra Norato, de 1931, considerado o mais importante do Movimento Antropofágico. Em Movimentos Modernistas no Brasil: 1922-1928, Bopp o define assim: “É um estado de aceitação, de instinto obscuro, subconsciente, mágico, pré-lógico. Renuncia compreender claramente as coisas. Espécie de preguiça filosófica, de moldura brasileira”. Esta carta sugere que o termo já era usado em 1927 por modernistas e “agregados”.

9. O jornalista e político paraibano Antenor de França Navarro, amigo de infância de Pedrosa.

10. Em 1927, Antônio Bento elegeu-se deputado estadual no Rio Grande do Norte. Plínio faz uma brincadeira com Duma, a Câmara Legislativa dos últimos anos do Império Russo (com o fim da URSS, o nome foi retomado).

11. CCE era a sigla de Comissão Central Executiva do PCB. Plínio pede o livro ABC do Comunismo, de Ievgueni Preobrajensky e Nikolai Bukharin, publicado pelo PC da União Soviética em 1920. Também quer edições da revista La Correspondencia Sudamericana, órgão do Secretariado Sul-Americano da 3ª Internacional, e do jornal La Antorcha, do PC espanhol.

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