Carta 10

10. Carta de notícias enviada por Mário Pedrosa e Plínio Mello a Lívio Xavier. Paraíba, 2 de abril de 1927. Original. 10 páginas. (Contém marginália nas folhas 2 e 3). [Livio-1927-04-02]

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Paraiba, 2-4-27.1A capital da Paraíba teve vários nomes, mas desde os anos 1650 era chamada de Cidade da Paraíba ou apenas Paraíba. Ela só passou a se chamar João Pessoa em 1930, em homenagem ao então presidente (governador) do Estado, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, assassinado naquele ano.

Livio, devo ter mandado na carta o meu endereço certo. Mas lá vae outra vez. Rua Epitacio Pessôa 532. Estou na capital da Parahyba. Para o interior não irei, so a passeio. Amanhã mesmo (domingo, 3) vamos sair de madrugada, em Ford, a Areia, na Borburema, visitar um cemiterio de indios, numa gruta trepada 300 metros de altura. A gente tem que bancar o alpinista para chegar nella. Pés descalços, subir e descer numa pedra a pique quasi. O cagaço é grande. Mas quando soubemos da cousa já éra tarde. Recusar, impossivel. O Anthenor2O jornalista e político paraibano Antenor de França Navarro, amigo de infância de Pedrosa. tambem vae. ––

Vou continuar a enumerar as cousas práticas por que você está tão sofrego. Mas eu penso que na minha carta fallei muito dessas cousas.

Devo voltar pro Rio agora por todo este mez. O Anthenor irá commigo. Não

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será antes de 15 de Abril. Ou tirarei logo daqui uma licença ou irei de licença de carona pra tirar lá. Estou cavando forte a merda do logar de auxiliar de Consulado. Com o Epitacio e o Simas, aquelle cunhado do Mangabeira, fiscal de consumo, amigo do Orlando, e com o qual tinha escriptorio, sabe?

O Epitacio disse a um amigo nosso, fallando a meu respeito, que o logar não éra difficil arranjar, que elle arranjaria, mas não servia especialmente porque acha que seria difficil arranjar designação pra Europa. Escrevi então ao Simas pra elle me dizer alguma cousa a respeito e ver se me podia garantir Oropa. Caso affirmativo, vou então em cima do Epitacio pra fazer o pedido.

Bom plano?

O Facó no Rio com gentes importantes baludas montou uma agencia de publici-

Na margem esquerda: A volta ao Rio – mais provavelmente será no fim do mez. Conversamos a respeito.

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dade, Agencia Brazileira, SA. O Anthenor é o correspondente della aqui, com 200$ mensaes. O Manoel Bandeira veiu encarregado de organisar as agencias por todo o Norte. Passou por aqui e por indicação do Gilberto Freyre, no Recife, procurou o Anthenor. Mas demorou-se aqui menos de meio dia. Não o vi. O Zé Vieira arranjou-me um logar na agencia – no Rio.3A Agência Brasileira de Notícias, criada pelo poeta surrealista e jornalista Américo Facó, foi a primeira rede nacional de divulgação de notícias do Brasil, com sucursais em vários Estados. Para organizá-las, em 1927 o poeta modernista Manuel Bandeira esteve em Salvador, Recife, Paraíba, Natal, Fortaleza, São Luís do Maranhão e Belém. Pedrosa também cita o sociólogo Gilberto Freyre, amigo de Bandeira e autor de Casa Grande e Senzala, e o escritor e crítico literário José Geraldo Vieira. O Plinio Barreto assumiu a direção do Estado de São Paulo, em logar do Julio de Mesquita. Bôa cousa para nós.4Dono do jornal, Júlio de Mesquita morreu em março de 1927. Plínio Barreto, que o substituiu no comando, fora chefe de Pedrosa no Diário da Noite. Convem você escrever-lhe felicitando-o. Ou telegrafar-lhe. Vou fazer isso hoje.

O Raphael vae importante. Foi encarregado pelo O Jornal para ir á Bolivia entrevistar o Prestes. Foi e ja voltou, fazendo pelo O Jornal um espalhafato daquelles.5Depois de uma campanha de mais de dois anos que percorreu 25 mil quilômetros por 13 Estados, a Coluna Prestes, comandada por Luís Carlos Prestes, foi para a Bolívia em fevereiro de 1927 e lá se exilou. Rafael Correia de Oliveira foi o primeiro jornalista brasileiro a entrevistar Prestes e seus companheiros no exílio. Vou escrever-lhe. Faça o mesmo. Parece que poderemos assim nos arranjar.

O Anthenor vae tambem na Aventura.

Na margem esquerda: Concordo com o que você diz sobre a sahida de São Paulo.

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Vamos os três assim: três mosqueteiros voltando da secca em procura da fortuna! Você trate de se preparar pra voltarmos juntos. Vamos recomeçar tudo outra vez. O Antonio Bento, fabuloso artista, vae ser muito infamemente deputado estadoal na bosta do Estado delle, peior ainda do que o nosso!6Em 1927, o crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima, que era muito amigo de Pedrosa, elegeu-se deputado estadual no Rio Grande do Norte. Mas o pae quer e elle está na mão e não arranja niquel. Só consenti nessa infamia porque elle me mandou dizer que só acceitou com o fito de facilitar- lhe a ida a Paris e demora por lá pelo menos um anno: arranja um projectosinho especial, e é a conta. É a tal famosa – torpesa inicial. Por isso o safado quer que eu fique por aqui até elle vir. Virá creio em Setembro, se o pae não conseguir que venha ja.

O Mario, Xangô fabuloso, virá em Outubro com elle.7Pedrosa se refere ao escritor Mário de Andrade, que acabava de encerrar uma viagem pelo Norte para pesquisar a cultura popular. A segunda, que se organizou a partir de um convite de Antônio Bento e outros amigos, só aconteceria bem depois. Entre dezembro de 1928 e o fim de fevereiro de 1929, o escritor visitou Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e, de passagem, Alagoas. Seu diário Viagem Etnográfica foi publicado postumamente no livro O Turista Aprendiz. Me disse o Bento

[fl. 5] 5

que elle ficara muito satisfeito com a deputação delle, Bento. Etc.

Estamos projectando de na ida pro Rio, fazermos uma pequena parada em Maceió, onde é fiscal de bancos o nosso fabuloso Zé Lins8O escritor José Lins do Rego, primo de Pedrosa. Ele trabalhava em Maceió como fiscal desde 1926. – Mas vamos tratar de voltarmos todos juntos.

–– O Bento te manda abraços e perguntou por você. A Mary me disse ella que vinha por ahi em quanto a Elsie tinha se ido. A Mary mandava contas pra nós dois – que travou conhecimento com o Benjamin Peret.

O Aragon, ainda não, porque tinha partido para a Inglaterra, com a amiga; por 3 dias – e ja faziam 3 semanas e não tinham voltado ainda. O Breton estava grippado. Peret contou pra ella que o pessoal surrealista ja estava pedindo pinico e que surrealistes de verdade só elle, Aragon e Breton.9Mary Houston, que depois se casou com Pedrosa, escreve de Paris, onde sua irmã, a cantora lírica Elsie Houston estava desde 1926 para estudar canto e fazer apresentações. O poeta surrealista Benjamin Péret mais tarde se casará com Elsie. Mary se refere a mais dois importantes escritores surrealistas, Louis Aragon e André Breton. Em janeiro de 1927, os três e o poeta surrealista Paul Éluard tinham aderido ao Partido Comunista Francês. A Mary,

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tocante de ingenuidade, confidenciou que o Peret, o contrario do que se poderia supor, era tímido, e sentimental, estando bancando pra cima della o amoroso (Não tenha ciumes por isso!) e que ella estava muito triste com isso porque queria ser apenas uma camarada bôa delle.

Recebi agora o ultimo numero de Clarté (nº 6) de 15 de Fevereiro deste anno. Traz collaboração de Fourrier (movimento chinez) – (a proposito, Shangai caíu! Vamos ter Gengis-Khan de novo, ein?) Do Victor Serge. Castre.10Marcel Fourrier e Victor Crastre faziam parte da equipe de redação da revista Clarté, ligada ao PC francês. O escritor Victor Serge, que fora para Petrogrado em fevereiro de 1919 para se juntar ao processo revolucionário russo, enviava de lá artigos para a revista. Eluard (L’intelligence révolutionnaire – Le Marquis de Sade) – bom, com Extraits do grande moralista: alguns geniaes, no genero. Fabuloso marquez. Aragon: – Notes. Deux Voyages en U.R.SS. – Aragon indignado da ignorancia do communismo de seus autores, da ignorancia do marxismo. Indignado dos écarts de vocabulaire!

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Defendendo os Soviets – querendo explicar as transigencias economicas e politicas dos Soviets! Os autores são uma mulher e um homem (advogado) – este escrevendo para Le Temps e a mulhersinha – para Le Petit Parisien. E termina Aragon: “Nous n’avons pas le temps de faire l’éducation de ce couple.” –– Pra quê negar – descansei. Estava com medo desse nosso amigo. Mas o bicho está firme.

–– Quanto a você – gostei do tom da carta. Estás de facto messianico (éra eu que o era antes) – decidido – calmo – a revolução assentou em você Que bicho?! Será que você quer bancar o nosso caro Léon?11O dirigente soviético Leon Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa.

Você está bancando direito “o forte”. A entrada obrigada que fizeste estes ultimos tempos na vida dura parece que de facto crystallisou muita cousa dentro de você. O tom está menos nervoso, pequeno-burguez e cretinisante.

A proposito – resiste, resiste danadamente

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á terrível tentação de cretinisar os teus. A salvação é a este preço. A salvação delles, bem entendido, que é a unica que se impõe, que é preciso.

Você venceu a prova e a revolta parece solidificou-se. Confesso que tinha medo…

Gozando tambem o tom dogmatico, calmo, doutoral, didatico – da tua carta, só o de Cachin ou Doriot nos artigos de Huma.12O dirigente comunista francês Marcel Cachin era editor do jornal L’Humanité, órgão oficial do PCF. O também dirigente Jacques Doriot colaborava com o jornal. A revolução, “desconfio nem Lenine”. Isso não. Ella pode não ser o individuo, mas o phenomeno, o acontecimento Lenine, isso é.13Lenin, o principal líder da Revolução Russa e chefe de governo da União Soviética (URSS) até sua morte, em 1924.

O resto está direito. Você não tinha necessidade de buscar um padre judeu pra avô, ou cousa que valha, pra explicar o seu messianismo. (…)

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Meu caro, se fôsse verdade o que você descobriu sobre a minha theoria da cachaça: – “appetite ancestral do caboclo vestido de superrealismo”, – a theoria era verdadeira, subia de baixo com uma força danada. Atuado pelas forças mysteriosas da raça – eu seria uma conclusão genial. Helas!

A língua de Mario de Andrade tambem serve como função cretinisadora e facilita botar a gente em estado de graça. E ajuda o pensamento mais livre da gente – mais afastado da estructura idiomatica, rija por demais, carunchosa viciada – com que a gente aprendeu, estudou, apanhou a doença do livro e a deformação cultural burgueza. Descobri isso, meu caro. A gente queira ou não com ella se approxima mais do nosso povo (Toda a literatura russa de antes e até da Revolução Bolchevique éra o mujique – sobre o mujique: Trotzky.14Mujique quer dizer camponês em russo. Pois então?) – que é uma

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realidade concreta e o trampolim permitido legitimo do nosso impeto revolucionario, no campo artistico, literario – até moral e politico?

Escrevi dois artigos nessa lingua braba: escandalo pavoroso. Me jogaram pedras, apostolo do primitivismo. Não te mandei ja porque não sabia de você. – Sobre a pagina Beethoven – o Plinio de Castro sou eu mesmo. Dei de lambugem, pro pessoal. Foi uma tapeação sem regra – Opinião geral: esse Plínio é um bicho, colosso, reduzio o tal do Mario Pedrosa á humilhação. Foi um confronto humilhante etc. Mande sua opinião sobre os dois na lingua braba. Ponto de vista das idéas e da lingua mesmo. E tambem se ha desvio. Me esculhambe.

Adeus. Meus votos pra que a situação de sua familia se clarifique de vez. E você venha connosco. Noticias de casa, as ultimas não são bôas. – Papae outra vez doente, com forte grippe. Estou ancioso por noticias.

Adeus. Me escreva ja. Abraços do Anthenor. Abraços, baitas saudades do

Mario.

Notas

1. A capital da Paraíba teve vários nomes, mas desde os anos 1650 era chamada de Cidade da Paraíba ou apenas Paraíba. Ela só passou a se chamar João Pessoa em 1930, em homenagem ao então presidente (governador) do Estado, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, assassinado naquele ano.

2. O jornalista e político paraibano Antenor de França Navarro, amigo de infância de Pedrosa.

3. A Agência Brasileira de Notícias, criada pelo poeta surrealista e jornalista Américo Facó, foi a primeira rede nacional de divulgação de notícias do Brasil, com sucursais em vários Estados. Para organizá-las, em 1927 o poeta modernista Manuel Bandeira esteve em Salvador, Recife, Paraíba, Natal, Fortaleza, São Luís do Maranhão e Belém. Pedrosa também cita o sociólogo Gilberto Freyre, amigo de Bandeira e autor de Casa Grande e Senzala, e o escritor e crítico literário José Geraldo Vieira.

4. Dono do jornal, Júlio de Mesquita morreu em março de 1927. Plínio Barreto, que o substituiu no comando, fora chefe de Pedrosa no Diário da Noite.

5. Depois de uma campanha de mais de dois anos que percorreu cerca de 25 mil quilômetros por 13 Estados, a Coluna Prestes, comandada por Luís Carlos Prestes, foi para a Bolívia em fevereiro de 1927 e lá se exilou. Rafael Correia de Oliveira foi o primeiro jornalista brasileiro a entrevistar Prestes e seus companheiros no exílio.

6. Em 1927, o crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima, que era muito amigo de Pedrosa, elegeu-se deputado estadual no Rio Grande do Norte.

7. Pedrosa se refere ao escritor Mário de Andrade, que acabava de encerrar uma viagem pelo Norte para pesquisar a cultura popular. A segunda, que se organizou a partir de um convite de Antônio Bento e outros amigos, só aconteceria bem depois. Entre dezembro de 1928 e o fim de fevereiro de 1929, o escritor visitou Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e, de passagem, Alagoas. Seu diário Viagem Etnográfica foi publicado postumamente no livro O Turista Aprendiz.

8. O escritor José Lins do Rego, primo de Pedrosa. Ele trabalhava em Maceió como fiscal desde 1926.

9. Mary Houston, que depois se casou com Pedrosa, escreve de Paris, onde sua irmã, a cantora lírica Elsie Houston estava desde 1926 para estudar canto e fazer apresentações. O poeta surrealista Benjamin Péret mais tarde se casará com Elsie. Mary se refere a mais dois importantes escritores surrealistas, Louis Aragon e André Breton. Em janeiro de 1927, os três e o poeta surrealista Paul Éluard tinham aderido ao Partido Comunista Francês.

10. Marcel Fourrier e Victor Crastre faziam parte da equipe de redação da revista Clarté, ligada ao PC francês. O escritor Victor Serge, que fora para Petrogrado em fevereiro de 1919 para se juntar ao processo revolucionário russo, enviava de lá artigos para a revista.

11. O dirigente soviético Leon Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa.

12. O dirigente comunista francês Marcel Cachin era editor do jornal L’Humanité, órgão oficial do PCF. O também dirigente Jacques Doriot colaborava com o jornal.

13. Lenin, o principal líder da Revolução Russa e chefe de governo da União Soviética (URSS) até sua morte, em 1924.

14. Mujique quer dizer camponês em russo.

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