Carta 4

4. Carta de notícias enviada por Mário Pedrosa a Lívio Xavier. São Paulo, 8 e 9 de julho de 1925. Original. 7 folhas. [Livio-1925-07-08]

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8 de 7, 25

Livio! onde estás que não respondes! (Antonio Castro Alves).1“Onde estás que não respondes!” é o começo do poema Vozes d’África, de Castro Alves, um dos mais importantes poetas do romantismo brasileiro e voz de destaque na campanha pela abolição da escravidão.

Prompto. Continúo a viver. Então, o Duhamel te deu volta? Conseguiste a possessão do mundo? Eu, de mim, desconfio não querer curar-me. Não sei que pensará sobre isto o Freud, que ando a ler.2Pedrosa se refere ao ensaio La Possession du monde, do escritor e poeta francês Georges Duhamel, e a Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise. É verdade que passo actualmente até meio são: ja não leio e nem penso mais. Raramente. Sinto preguiça no cerebro: bem haja!

Symptoma altamente animador para o meu caso: talvez haja esperanças de salvamento. O meu refoulement não teve necessidade de explodir, exteriorisar-se como um tumor que arrebenta. O meu tumor, introspectivo e maligno, creio que não vem a fuso e lá por dentro se resolverá, dissolvido em materia e tudo liquidado.

Apenas ha um certo perigo de infecção generalisada etc sceptiicemia(?) Nem sei se é o caso nem como se escreve isso. Mas, que diabo, não ha nada de bom sem risco.
Tenho ouvido o Brailowsky,3O pianista Alexander Brailowsky, um dos principais artistas de concerto do período entreguerras. com a pelle, com alguns nervos e talvez com a carne: sae barato, commodo e sem esforço. Aliás não é preciso mais. E o Ribas? Trouxe alguma cousa de novo? (…) –– Ainda não vi o amigo,

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fino espirito, do Murillo.4O poeta Murilo Mendes, de quem Pedrosa era muito amigo desde o início dos anos 1920. Nesses anos, Murilo Mendes era um dos expoentes do surrealismo e do movimento modernista. O bicho é difficil de encontrar-se. Talvez hoje o ache – diga isso ao Murillo, que talvez ja tenha perdido as esperanças de ver a côr da carne, a carne sem sombra, etc como o millionario americano que sahiu mundo a fora á procura da aurora boreal. Não imagina o frio que fez hoje durante a noite, quasi não me deixou dormir, o sujeito. E agora ainda está damnado. São 11 horas da manhã. Faz sol, felizmente, mas que sol invertido. Sem vergonha.

Não tenho noticias do Rio senão pelo O Jornal, á noite, quando volto ao meu pobre leito triste e estreito, como o de Procusto,5O Jornal era um diário matutino do Rio de Janeiro. Pedrosa se refere a um bandido da mitologia grega, Procusto, que obrigava viajantes que se hospedavam em sua casa a se deitarem em uma cama que teria seu tamanho. Se o hóspede fosse alto demais, Procusto cortava suas pernas para ajustá-lo à cama; os menores eram esticados até atingirem o comprimento. segundo o poeta. Vê se me mandas a N.L. que traz a hora com o Benda6Trata-se do artigo “Une Heure Avec M. Julien Benda Par Frederic Lefevre”, publicado na edição de 23 de maio de 1925 da revista Les Nouvelles Litteraires. O filósofo francês Julien Benda defendia o engajamento político dos intelectuais, mas não o envolvimento com ideologias como o nacionalismo e o marxismo. Foi umas das figuras mais respeitadas entre os intelectuais antifascistas nos anos 1930. e o numero ultimo se tiver qualquer cousa de interessante. Recebi ha dias um pacote estranho com 3 numeros avulsos da “A Classe Operaria” que se publica ahi no Rio.7A Classe Operária, o jornal oficial do PCB, começou a circular no Rio de Janeiro em 1º de maio de 1925, com periodicidade semanal. Sabias disso? Fiquei com medo por ser tão conhecido!… Escrevi, para não dar parte de fraco, uma carta othodoxa ao camarada redactor e mandei uns cobres para assignatura etc.

Depois fiquei assombrado da minha audacia e da minha acção… revolucionaria: ja me via com a policia atraz e com ares de martyr pela causa, para o que, confesso,

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não nasci nem tenho grande vocação. Espero que o mesmo haja succedido com o meu irmão de crenças… – antes mal acompanhado do que só. E o nosso bravo proffessor Castro Rebello?8Pedrosa consolidou seu interesse pelas questões sociais e pelo marxismo enquanto cursava a Faculdade de Direito no Rio, entre 1920 e 1923, ao se aproximar do grupo de estudos formado pelo professor Edgar de Castro Rebello, um entusiasta do marxismo. Lívio Xavier fazia parte desse grupo. Por volta de 1925, Castro Rebello entrou no PCB. Que tem responsabilidades de mestre!

Creio que foi elle quem me denunciou, aqui, no meu socego de São Paulo. Infamia.

Gostei do jornal que esculhambava o partido socialista do Carpenter e do Evaristo.9O advogado e historiador Antônio Evaristo de Morais e o jurista Luiz Frederico Carpenter. No começo dos anos 1920, fundaram o Partido Socialista, que participou na 2ª Internacional. ––

dia 9 – 1 hora da tarde. Livio, perdôa-me. Recebi quando fui almoçar tua carta-bilhete. É, nem foi porque morri que deixei de dar noticias. Cio, pode ser. Preguiça, grande porcentagem. Ingratidão, é que não. Clama, Jeremias, no deserto. As pedras e as areias escutarão.

Agora, outra razão que não sabes: a volta dyonisiaca de minha saúde, estou em via de restabelecimento. Ainda hontem, á noite, voltei de porre para casa. Dormi pesadamente – minha cabeça pesava, com certeza, de genio e no travesseiro posei-a, dando um uff! de desoppresão como um carregador que deita fora o fardo pesado. Foi uma noite prodigiosa: o subconsciente, como uma erupção vulcanica, vem à tona e toda a noite, num mundo estranho, povoado de imagens

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vertiginosas, rapidas como num filme, passaram-se cousas do arco da velha. Lembro-me que, num instante, vi a tua silhueta asymetrica como o anão da tetralogia (de que não me recordo o nome)10O anão Alberich, personagem do ciclo de quatro óperas épicas O Anel do Nibelungo, do compositor alemão Richard Wagner. passar no turbilhão. Foi um acontecimento surrealista, mas só para uso interno. ––

Vou gerir alguns motivos de tua carta-bilhete. Murillo. Não calculaste o mal effeito de tua phrase: “Licença para ser ingenuo, ma [sic] não para ser mal educado publicamente.”(!) Então, tudo não corre por conta da ingenuidade? Deixa o homem revoltar-se, indignar-se porque é impulso da fé. Felizmente para a Arte?… Seria capaz de fazer tanto? Mesmo pela Revolução? Ou reagindo, como o Ruy Barbosa do O Jornal, inflammado da ira dum propheta, contra o sacrilegio commettido contra Beethoven? Não, oh! miseravel! Não posso ouvir sem faniquitos, as condemnações em nome do bom-gosto, das bôas maneiras, da elegancia, da bôa e fina educação etc. Incréo, deixa o crente esbravejar. Foi [Polymcta, palavra não compreensível] que agiu. Ficaste do lado da sociedade, em defesa da autoridade e da ordem, em defesa do altar, oh tarado! Esqueceste que eras revolucionario, não soubeste resistir á opinião publica, renegaste a luta de classes, oh! Social-democrata! Dreyfusard! Jaurerista!11Dreyfusards era o nome dado aos defensores do capitão Alfred Dreyfus, condenado por espionagem pelo Exército francês em 1894, em um processo baseado em documentos forjados. O caso Dreyfus provocou enorme polêmica, dividiu opiniões e teve enorme repercussão na França e no exterior. O dirigente do Partido Socialista francês Jean Jaurès e seus seguidores se posicionaram a favor de Dreyfus.

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Teus reflexos, ao reagirem, trahiram-te, homem-consequencia, elo vagabundo, indistincto da cadeia. Toma esta licção. ––

Estimei o escandalo que fez o nosso caro Aragon. Espero que o Libertinage tenha restabelecido á calma. Achei bem achado o juizo de Mary, a respeito.12O livro Le Libertinage, do escritor francês Louis Aragon, publicado em 1924. Na época, Aragon era um dos grandes nomes do surrealismo em Paris. Pedrosa cita Mary Houston, com quem se casou depois. Despeitados. No fundo, é a critica marxista ao surrealismo, despojado o despeito de qualquer intenção subjetiva e pejorativa.

–– Não comprehendi porque leste o Aimée do Rivière. Nunca me interessou o Rivière, mesmo porque, numa antiga Clarté, um artigo da Russia, do Victor Serge, sobre lettras francesas – nas quaes se incluia o Aimée – mostrava a insignificançia, a banalidade de todas as perfeições litterarias francezas, o déjà vu etc desta, em comparação com a brutalidade, a vida, o arrojo, a complexidade e gravidade dos problemas que agitavam a jovem litteratura revolucionaria russa. Como é isso? Você ja me tem cançado de dizer que não pode mais ler romances de analyse psychologica, etc, tanto que nunca supportou o Stendhal? E agora tem fraco pela analyse ao [historia palavra não compreensível]?!13Aimée, do escritor Jacques Rivière, foi publicado em 1922. É um dos livros criticados pelo escritor Victor Serge, que se mudou para Petrogrado em 1919 e participou ativamente do processo da Revolução Russa. De lá, Serge enviava artigos para a Clarté. Pedrosa cita ainda o escritor francês Stendhal.

Comecei a ler La Guerisson. Gostando, sem novidade. Litterariamente, gosto do estylo – moderno.

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Ja vi no Alves, sujo de poeira, – Le règne de l’esprit malin – deste mesmo Ramuz.14La guerisson des maladies e Le règne de l’esprit malin são romances do escritor suíço Charles Ferdinand Ramuz. Pedrosa provavelmente se refere a ter visto o segundo na Livraria Francisco Alves, que tinha uma filial em São Paulo. Será este, o livro, que o Barbosa citou, em primeiro plano, do Ramuz?

Se sim, vou compral-o. Diga-me. ––

Você ainda pensa sobre todas as cousas exactamente do mesmo jeito? Ja tem novidade? É preciso que me participes immediatamente de qualquer mudança, senão “les parfums, les couleurs et les sons ne se répondent plus”… Eu, de mim, não, não tenho modificações importantes a communicar: o meu fundo essencialista não variou. Nem se comprehende de outra maneira. Agora – o que sinto com mais acuidade e lucidez do que dantes, e desprehendimento, – é a impossibilidade da arte, notadamente na litteratura. Tudo nesta é commentario, ornamento, critica, pretexto – realisação de arte, synthese, creação – em parte alguma. Na musica, ou esta me está estafando ou então, não sei que é. Como arte, não a concebo quasi. Como acção, sensação – sim. Os romanticos – uma sensaçãosinha superficial, como a bolina num bond ou um namorosinho com uma menina ingenua páu: virgem. Beethoven – uma reacção mais forte, necessidade de luta, sobretudo questão de temperamento. Haendel – movimento das massas, eu, perdido, submergido nella. Bach – ou ainda Scarlati, por exemplo, – vagamente, com certo esforço – diviso a musica abstracta, a musica.

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Os modernos – questão de moda, mesmos preconceitos novos etc. Debussy – um instante de enervamento sensorial etc. Os russos – sympathia social, romantismo politico etc. Stravinsky? Stravinky talvez seja uma pequena revivescencia de Bach, mas um Bach ás avessas, á maneira de Valery.15Pedrosa cita alguns dos mais importantes compositores da história da música: os alemães Ludwig van Beethoven, Georg Friedrich Handel e Johann Sebastian Bach, o italiano Giuseppe Domenico Scarlatti e, mais modernos, o francês Debussy e o russo Stravinsky, que ele compara com o poeta simbolista francês Paul Valéry. Onde nisso tudo – a arte pela arte, a arte só, desinteressada, livre, synthetica – no seu esplendido isolamento?

Na pintura? na pintura que não conheço bem, o facto embora menos evidente, é real; em todo caso – a pintura ainda está menos mesclada, mais pura na sua transcendencia do que a musica. A esculptura? não existe. A architectura? mal, longinquamente, fragilissimos signaes de resurreição começa a dar, depois de morta e enterrada quantos seculos? Aonde a arte? Que é a arte? Mudou-se para a cabeça de Lenine e talvez do Einstein.16Lenin, o principal líder da Revolução Russa e chefe de governo da União Soviética (URSS) até sua morte, em 1924, e o físico e matemático alemão Albert Einstein, que revolucionou nossa compreensão do mundo com a Teoria da Relatividade. Vamos matar gente, queimar, destruir, pela Revolução. Os artistas pullulam, mas a materia, a carne, o barro para se fazer a arte aonde se acha? Goêthe bem que tinha razão: Au commencement est l’action.17O alemão Johann Wolfgang von Goethe, um dos mais importantes escritores do Romantismo europeu. A frase citada por Pedrosa está em Fausto, sua obra mais famosa, e pode ser traduzida como: “No princípio era a ação.” ––– Não esperava por essa tirada: perdi o folego. Abraços nos amigos, que se lembrem de mim.

Adeus, meu caro cumplice. Espero cartas suas, ja.

Vamos, inverta-se por amor á verdade.

Sou eu

–– Mario.

Notas

1. “Onde estás que não respondes!” é o começo do poema Vozes d’África, de Castro Alves, um dos mais importantes poetas do romantismo brasileiro e voz de destaque na campanha pela abolição da escravidão.

2. Pedrosa se refere ao ensaio La Possession du monde, do escritor e poeta francês Georges Duhamel, e a Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise.

3. O pianista Alexander Brailowsky, um dos principais artistas de concerto do período entreguerras.

4. O poeta Murilo Mendes, de quem Pedrosa era muito amigo desde o início dos anos 1920. Nesses anos, Murilo Mendes era um dos expoentes do surrealismo e do movimento modernista.

5. O Jornal era um diário matutino do Rio de Janeiro. Pedrosa se refere a um bandido da mitologia grega, Procusto, que obrigava viajantes que se hospedavam em sua casa a se deitarem em uma cama que teria seu tamanho. Se o hóspede fosse alto demais, Procusto cortava suas pernas para ajustá-lo à cama; os menores eram esticados até atingirem o comprimento.

6. Trata-se do artigo “Une Heure Avec M. Julien Benda Par Frederic Lefevre”, publicado na edição de 23 de maio de 1925 da revista Les Nouvelles Litteraires. O filósofo francês Julien Benda defendia o engajamento político dos intelectuais, mas não o envolvimento com ideologias como o nacionalismo e o marxismo. Foi umas das figuras mais respeitadas entre os intelectuais antifascistas nos anos 1930.

7. A Classe Operária, o jornal oficial do PCB, começou a circular no Rio de Janeiro em 1º de maio de 1925, com periodicidade semanal.

8. Pedrosa consolidou seu interesse pelas questões sociais e pelo marxismo enquanto cursava a Faculdade de Direito no Rio, entre 1920 e 1923, ao se aproximar do grupo de estudos formado pelo professor Edgar de Castro Rebello, um entusiasta do marxismo. Lívio Xavier fazia parte desse grupo. Por volta de 1925, Castro Rebello entrou no PCB.

9. O advogado e historiador Antônio Evaristo de Morais e o jurista Luiz Frederico Carpenter. No começo dos anos 1920, fundaram o Partido Socialista, que participou na 2ª Internacional.

10. O anão Alberich, personagem do ciclo de quatro óperas épicas O Anel do Nibelungo, do compositor alemão Richard Wagner.

11. Dreyfusards era o nome dado aos defensores do capitão Alfred Dreyfus, condenado por espionagem pelo Exército francês em 1894, em um processo baseado em documentos forjados. O caso Dreyfus provocou enorme polêmica, dividiu opiniões e teve enorme repercussão na França e no exterior. O dirigente do Partido Socialista francês Jean Jaurès e seus seguidores se posicionaram a favor de Dreyfus.

12. O livro Le Libertinage, do escritor francês Louis Aragon, publicado em 1924. Na época, Aragon era um dos grandes nomes do surrealismo em Paris. Pedrosa cita Mary Houston, com quem se casou depois.

13. Aimée, do escritor Jacques Rivière, foi publicado em 1922. É um dos livros criticados pelo escritor Victor Serge, que se mudou para Petrogrado em 1919 e participou ativamente do processo da Revolução Russa. De lá, Serge enviava artigos para a Clarté. Pedrosa cita ainda o escritor francês Stendhal.

14. La guerisson des maladies e Le règne de l’esprit malin são romances do escritor suíço Charles Ferdinand Ramuz. Pedrosa provavelmente se refere a ter visto o segundo na Livraria Francisco Alves, que tinha uma filial em São Paulo.

15. Pedrosa cita alguns dos mais importantes compositores da história da música: os alemães Ludwig van Beethoven, Georg Friedrich Handel e Johann Sebastian Bach, o italiano Giuseppe Domenico Scarlatti e, mais modernos, o francês Debussy e o russo Stravinsky, que ele compara com o poeta simbolista francês Paul Valéry.

16. Lenin, o principal líder da Revolução Russa e chefe de governo da União Soviética (URSS) até sua morte, em 1924, e o físico e matemático alemão Albert Einstein, que revolucionou nossa compreensão do mundo com a Teoria da Relatividade.

17. O alemão Johann Wolfgang von Goethe, um dos mais importantes escritores do Romantismo europeu. A frase citada por Pedrosa está em Fausto, sua obra mais famosa, e pode ser traduzida como: “No princípio era a ação.”

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