Carta 15

15. Carta de notícias enviada por Mário Pedrosa a Lívio Xavier. Berlim, 22 e 23 de setembro de 1928. Original. 5 folhas. [Livio-s-d-04]

[fl. 1]

Domingo – parece que é 22 ou 23

Livio

Não escrevi logo porque relachei. Acho que o seu pito em alguma parte tem razão, mas na maior parte não tem. Aliás ja esperava por elle. Quiz escrever logo depois que recebi a sua remessa, mas fui deixando, deixando até que veiu sua 2ª carta, ja em resposta á minha.

A supposta censura que fiz não é censura cousa nenhuma. Foi tudo motivado naturalmente pela sorpresa que causou o acto da demissão: vocês deram uma solução rapida demais a crise.1Em 1928, o PCB sofreu duas crises sérias. De um lado, um grupo de dirigentes e militantes antigos passou a contestar a política sindical do partido. O embate com a direção se arrastou por meses e resultou na saída de 46 opositores. De outro lado, Lívio Xavier, Rodolfo Coutinho e cerca de 50 militantes fizeram uma crítica mais abrangente à orientação do partido e à falta de democracia interna, muito próxima da linha da Oposição de Esquerda. Coutinho acabou por se demitir da direção e em maio se afastou do partido. Outros membros do grupo também se desligaram ou passaram para a oposição, inclusive na Juventude Comunista, sobre a qual Coutinho tinha muita influência. Pedrosa fora informado dos acontecimentos em cartas anteriores. Se bem que o acto final devera ser esse mesmo – em todo caso acho que vocês o precipitaram. Menospresaram o valor de algumas formalidades quando mais não fôssem para facilitar a justificação da attitude de vocês perante a Juventude Comunista e sobretudo mostrar aos fanaticos da disciplina (que é a maioria) a sinceridade da attitude dos chefes etc. Vocês erraram na tactica – não aproveitaram nenhuma opportunidade, não para fazer conchavos ou concordias puramente formaes etc, não – foram logo ás vias de cabo etc. A 2ª carta não me convenceu do contrario. E por isso nesse sentido achei graça e acertada a definição dada pelo Castro2O professor da Faculdade de Direito do Rio e militante do PCB Edgar de Castro Rebello. – de raid communista. Não ha nisso nenhum zelo maior excessivo pelas formalidades etc. Estou certo que tudo acabaria como acabou – e era mesmo a solução verdadeira – mas acho que foi tomada sem preparativo previo – de modo a facilitar a comprehensão do acto pela maioria ou ao menos pela parte hesitante, indecisa desta. Ou vocês não ligaram, desdenharam esse resto – como massa sem significação? O que seria tambem uma attitude errada, intellectual e sectaria.

Quanto ao mais os meus receios e duvidas eram justificados – pois nada tinha recebido de vocês

[fl. 2] 2

Apenas não sei onde você descobriu na minha carta a idéa de deixar os operarios no partido. O que disse e pensei – e ainda penso – é – que como vocês, como eu, não são proletarios, mas intellectuaes burguezes, vivendo separado do proletariado, etc, estão sujeito a todas as consequencias desta situação – e de uma hora para outra – podem entregar os pontos – sobretudo sem mais nenhum outro factor – exterior, afinidade fóra, mesmo formal, como é o caso do partido ahi no Brasil, e assim sendo – os proletarios que tivessem acompanhado vocês – ficariam no hora veja, teriam por força retrogradado politicamente etc etc. E isto sim seria um mal. E por isso tive e tenho razão. Que é que vocês fizeram depois que deram o fóra do partido? Estão verdadeiramente organisados? Estão trabalhando nos syndicatos seriamente onde podem ter influencia? Ja fizeram alguma publicação? Rudimentar que seja?

Ou apenas se limitam a discutir nas mesas dos cafés como é o nosso habito? Me admira que você com todo o seu objetivismo, todo o fanatismo do seu objetivismo não veja nada disto, para só encarar a situação debaixo duma verdade puramente abstracta e theorica. Vocês só se podem agora justificar pela acção organica que desenvolverem por mais vagabunda que seja. E todo o nó da situação está ahi.

E da capacidade de agir e de organisar é que ponho vocês todos em duvida. Assim tambem como eu. Que estou passando por uma crise e tomando consciencia de uma posição que só no Brazil poderá ser esclarecida. Outra cousa agora.

– Você me mandou diser que junto á sua carta vinha um cheque para o Naville e umas notas que podia eu aproveitar para Clarté?3Ao longo desta carta, Pedrosa cita várias vezes a revista Clarté, dirigida por Pierre Naville, mas em 1928 ela já tinha outro nome. A revista adotara uma linha de confronto com a direção do PC francês e a Internacional Comunista e desde 1927 funcionava como a voz da Oposição de Esquerda na França. Em janeiro de 1928, Naville foi expulso do PC e transformou Clarté em uma revista abertamente trotskista, com o nome La Lutte de Classes, que o próprio Pedrosa menciona mais adiante. Nada disto veiu. Escrevi pro Naville perguntando

[fl. 3] 3

Ja soube que o dinheiro você remetteu directamente, mas as notas não vieram – e o Naville na resposta me perguntou por ellas e me disse que tinha te escripto pedindo ou perguntando. Ja é a 2ª ou 3ª vez que você me prega peça. Ja estou pensando não sei porque e ja tenho vergonha de me desculpar. Que diabo, você agora não tem mais nada a fazer no partido, pode – muito bem me mandar um schema ja que não se quer dar ao trabalho de escrever alguma cousa para Clarté. Eu aqui – não tenho mesmo tempo pra pensar nisso – com o allemão, ler allemão, escrever ainda bostas para jornaes de São Paulo etc. Você podia bem fazer – ou pelo menos me facilitar esse trabalho. Você comprehende, eu aqui estou preocupado com outra cousa – e tenho que fazer qualquer cousa – de mudar completamente o rumo das minhas idéas e a orientação do meu esforço intellectual que apesar de vagabundo sempre estou ajeitado pra um lado. E você não sabe a burrice, a estreiteza em que se fica quando se está embrenhado em aprender um raio duma lingua como o allemão. Fica-se sem agilidade intellectual e ainda mais para escrever numa outra lingua numa 3ª lingua qualquer cousa de importante. Faça pois isso duma vez. É uma vergonha, pra você – pra todos nós. Tenha coragem – é só ter um pouco de disposição e largar a preguiça. Faça sobre o Brasil. E escreva pro Penelon ou cousa que valha pra elle dar alguma cousa sobre a Argentina.4José Fernando Penelón, um dos fundadores do Partido Comunista da Argentina, pelo qual se elegeu vereador em Buenos Aires em 1920 e 1926. Ele também foi dirigente do Secretariado Sul-Americano, o órgão regional da Internacional Comunista, e editor de sua revista, La Correspondencia Sudamericana. Divergências com a IC e a orientação majoritária do PC argentino a partir de 1926 levaram a uma crise interna grave, que resultou na expulsão de Penelón e seu grupo no fim de 1927.

Vocês – os 2 grupos do Brasil e Argentina pre-

[fl. 4]

cisam, é mais do que evidente, terem relações.

Me mande o troço – ou mande directo pro Naville. Vamos acabar com isso. Aliás seria a melhor cousa que você podia fazer agora. Larga a merda da politica e caia completamente duma vez na unica cousa pra que você da – na theoria. Com o Coutinho e o Castro como auxiliares e informadores – você pode ainda bem melhor do que ninguem, eu – fazer uma bosta passavel para Clarté. Bem agora – é hora de ir jantar – é sabbado, vespera de domingo, estou de fatiota nova, como convem ao dia, e a pequena ja está aqui a meu lado no quarto esperando ja meio impaciente. Adeus.

– Hoje é domingo 1h da tarde. Quero ver se ainda ponho esta carta no correio. Não tenho sua ultima carta em mão pra responder tintim por tintim. Quanto a ligeiréza ideologica de que você me acusa seria verdadeira se eu tivesse condenado quanto ao merito da questão: a retirada de vocês do partido etc.

Quanto ao Leonidas continúo a pensar o que pensava. Confusionista, burro e inaproveitavel. Basta ver o horror que ainda tem do Trotzky. Que diabo de critica pode elle bem fazer do livro do Brandão e que diabo pode elle entender de marxismo.5Provavelmente o professor de Direito Leônidas Rezende. Simpático ao positivismo e ao marxismo, ele chegou a ceder seu jornal, A Nação, ao PCB em 1927. Neste trecho, Pedrosa se refere ao livro Agrarismo e industrialismo, do dirigente e teórico do PCB Otávio Brandão, publicado em 1926. Tenciono ler muita cousa interessante agora pelo inverno. Outro dia escrevi ao Anthenor. Viu?6O jornalista e político paraibano Antenor de França Navarro, amigo de infância de Pedrosa. – Me mande – dizer – informe – alguma cousa sobre concurso no Pedro 2º ou Escola Normal: Sociologia e Allemão. Quando se fala que seja o concurso. Quem vae fazel-o. Nós 2 podiamos tentar o de Sociologia juntos. Você cavava na litteratura ingleza e eu a allemã – tendo ambos a franceza como denominador commum. E trocávamos a sciencia de cada um – de maneira a dar ao outro uma idéa della. Que acha? Que ha de novo por ahi.

Do Congresso da J. C. nada de interessante.7Trata-se do 5º Congresso da Internacional da Juventude Comunista, realizado em Moscou entre 20 de agosto e 18 de setembro de 1928. Continúa tudo cada vez mais cretinisado. E a situação caminhando. Gostei da carta do Naville – ao grupo Contre le Courant.8Um dos grupos ligados à Oposição de Esquerda no PC francês e expulso do partido em dezembro de 1927. O grupo lançou a revista Contre le Courant, que circulou do fim de novembro de 1927 a outubro de 1929. Quanto a questão do imperialismo e Lenine-Rosa Luxemburg – é muito complicado. E eu

[fl. 5]

mesmo ainda não li a Rosa. O que vou fazer breve.9Uma das mais importantes teóricas do marxismo, Rosa Luxemburgo liderou a ala esquerda da Social-Democracia Alemã até 1914 e foi uma das fundadoras do Partido Comunista Alemão no início de 1919. Rosa acompanhou intensamente a Revolução de 1917 na Rússia, e tinha várias divergências com os bolcheviques, entre elas sobre o conceito de imperialismo. Sua obra mais conhecida a respeito desse tema é A acumulação do Capital, de 1912 (baixe o PDF). Lenin publicou Imperialismo fase superior do capitalismo em 1916 (leia aqui), e Nikolai Bukharin, um dos mais importantes economistas bolcheviques, lançou A Economia Mundial e o Imperialismo um ano depois (leia aqui). Isso está mais ligado a questão do monopolio – como explicação do capitalismo imperialista. A Inglaterra por exemplo é um paiz sem monopolio etc. Hoje só te posso falar muito por cima. Se trata da interpretação de Buckharine quanto à estabilisação actual do Capitalismo etc. Lutte de Classes parece vae pendendo pro pensamento de Bordiga, que é pouco conhecido de todos.10Amadeo Bordiga, um dos fundadores e primeiro secretário-geral do PC da Itália. Foi dirigente da Internacional Comunista e de sua tendência de esquerda. Contrário à tática da Frente Única e à stalinização dos PCs, suas posições coincidiam com as da Oposição de Esquerda em vários pontos. Foi destituído da direção da IC em 1926 e expulso do PCI em 1930.

Estou curioso. A crise continúa na mesma. Me digam o que pretendem fazer e o que estão fazendo. Recebi outro dia carta do Astrojildo,11Astrojildo Pereira, fundador e secretário-geral do PCB. junto com resoluções da Reunião do Secretariado Sul Americano – em Buenos Ayres, naturalmente ultra stalinianas; elle me perguntara se tinha lido os documentos que tinha remettido sobre o caso de vocês. Mas ainda não pedia a opinião, até hoje nunca me referi a isso. Mandei uma tradução sobre as eleições – a Classe Operaria publicou.12A Classe Operária era o jornal oficial do PCB. Etc. O amigo do Coutinho que está na Russia – pela amostra – parece que está completamente cretinisado. Vocês precisam levar o resto que acompanhou vocês até ao verdadeiro conhecimento da situação. Pelo menos fazer com que leiam os documentos da opposição.

Não se esqueça – de fazer o troço pro Naville. Vocês precisam de expressarem o pensamento sobre a situação brasileira. Vocês agora, que diabo, são directamente responsavel [sic] sobre uma corrente de opinião. Aproveite a sessão do Secretariado Sulamericano – veja todo o material que a respeito foi publicado – e faça a critica. O Secretariado deve ter feito uma analyse ou cousa que valha sobre a situação sul-americana – tome isso pois como ponto de referencia. Fica muito bom pra ser publicado em Lutte de Classes. A idéa é optima – e aliás o dever de vocês. Vou mandar dizer isso ao Naville. Me escreva dizendo a respeito e faça a cousa. Todo dia mando diser ao Naville que vem cousa do Brasil – e nunca chega. A culpa é sua – que sempre me manda diser isso – desde a promettida carta do Coutinho.

Abraços neste, Castro e o resto. Hahnemann. Anthenor. Mary, etc etc Como vae o Antonio Bento?13Pedrosa se refere a amigos comuns. Os que não mencionou antes na carta são Mary Houston, com quem se casou, o crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima e o jurista Hahnemann Guimarães.

Abraços do Mario

Notas

1. Em 1928, o PCB sofreu duas crises sérias. De um lado, um grupo de dirigentes e militantes antigos passou a contestar a política sindical do partido. O embate com a direção se arrastou por meses e resultou na saída de 46 opositores. De outro lado, Lívio Xavier, Rodolfo Coutinho e cerca de 50 militantes fizeram uma crítica mais abrangente à orientação do partido e à falta de democracia interna, muito próxima da linha da Oposição de Esquerda. Coutinho acabou por se demitir da direção e em maio se afastou do partido. Outros membros do grupo também se desligaram ou passaram para a oposição, inclusive na Juventude Comunista, sobre a qual Coutinho tinha muita influência. Pedrosa fora informado dos acontecimentos em cartas anteriores.

2. O professor da Faculdade de Direito do Rio e militante do PCB Edgar de Castro Rebello.

3. Ao longo desta carta, Pedrosa cita várias vezes a revista Clarté, dirigida por Pierre Naville, mas em 1928 ela já tinha outro nome. A revista adotara uma linha de confronto com a direção do PC francês e a Internacional Comunista e desde 1927 funcionava como a voz da Oposição de Esquerda na França. Em janeiro de 1928, Naville foi expulso do PC e transformou Clarté em uma revista abertamente trotskista, com o nome La Lutte de Classes, que o próprio Pedrosa menciona mais adiante.

4. José Fernando Penelón, um dos fundadores do Partido Comunista da Argentina, pelo qual se elegeu vereador em Buenos Aires em 1920 e 1926. Ele também foi dirigente do Secretariado Sul-Americano, o órgão regional da Internacional Comunista, e editor de sua revista, La Correspondencia Sudamericana. Divergências com a IC e a orientação majoritária do PC argentino a partir de 1926 levaram a uma crise interna grave, que resultou na expulsão de Penelón e seu grupo no fim de 1927.

5. Provavelmente o professor de Direito Leônidas Rezende. Simpático ao positivismo e ao marxismo, ele chegou a ceder seu jornal, A Nação, ao PCB em 1927. Neste trecho, Pedrosa se refere ao livro Agrarismo e industrialismo, do dirigente e teórico do PCB Otávio Brandão, publicado em 1926.

6. O jornalista e político paraibano Antenor de França Navarro, amigo de infância de Pedrosa.

7. Trata-se do 5º Congresso da Internacional da Juventude Comunista, realizado em Moscou entre 20 de agosto e 18 de setembro de 1928.

8. Um dos grupos ligados à Oposição de Esquerda no PC francês e expulso do partido em dezembro de 1927. Esse grupo lançou a revista Contre le Courant, que circulou do fim de novembro de 1927 a outubro de 1929.

9. Uma das mais importantes teóricas do marxismo, Rosa Luxemburgo liderou a ala esquerda da Social-Democracia Alemã até 1914 e foi uma das fundadoras do Partido Comunista Alemão no início de 1919. Rosa acompanhou intensamente a Revolução de 1917 na Rússia, e tinha várias divergências com os bolcheviques, entre elas sobre o conceito de imperialismo. Sua obra mais conhecida a respeito desse tema é A acumulação do Capital, de 1912 (baixe o PDF). Lenin publicou Imperialismo fase superior do capitalismo em 1916 (leia aqui), e Nikolai Bukharin, um dos mais importantes economistas bolcheviques, lançou A Economia Mundial e o Imperialismo um ano depois (leia aqui).

10. Amadeo Bordiga, um dos fundadores e primeiro secretário-geral do PC da Itália. Foi dirigente da Internacional Comunista e de sua tendência de esquerda. Contrário à tática da Frente Única e à stalinização dos PCs, suas posições coincidiam com as da Oposição de Esquerda em vários pontos. Foi destituído da direção da IC em 1926 e expulso do PCI em 1930.

11. Astrojildo Pereira, fundador e secretário-geral do PCB.

12. A Classe Operária era o jornal oficial do PCB.

13. Pedrosa se refere a amigos comuns. Os que não mencionou antes na carta são Mary Houston, com quem se casou, o crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima e o jurista Hahnemann Guimarães.

Rolar para cima